por Luiz Carlos Monte
A ética é possível?
Essa foi certamente uma das leituras mais importantes que
fiz em 2014. Surpresa total.
Quando adolescente, costumava ver esse livro na estante do meu pai, mas, com esse título e com o nome desse autor, não me despertou curiosidade. Imaginava um livro sisudo. Preferi desbravar a biblioteca paterna pelos Jorge Amado e Henry Miller. Ah, os hormônios...!
Com os livros eletrônicos, o título me reapareceu.
Detesto fazer escolhas, prefiro sempre que algum algoritmo faça-a para mim. No caso, ler A Cidadela porque era um ebook e tinha acabado de ler um livro de papel – seria o meu segundo livro lido no kobo – e, principalmente, porque na ordem alfabética de autores ele aparecia entre os primeiros: A. J. Cronin. O primeiro livro no kobo que eu li foi da Agatha Christie, como contei aqui. Eu tinha o texto em inglês "The Citadel", mas parti para a versão lusa mesmo.
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| The Citadel (wikimedia) |
A surpresa foi ver como esse livro, escrito em 1937, era atualíssimo. Ao contar a história do médico Andrew Manson, inspirada em fatos vividos e testemunhados pelo autor, também médico, o tema da ética médica é “materializado” no enredo que acompanha a carreira do personagem. O leitor, acompanhando a vida do casal, é capturado pela plausibilidade das situações e de todos os personagens. Mais do que isso, pela realidade dos fatos que, com naturais variações, ocorrem até hoje. A questão ética não é exposta explicitamente. Os conflitos éticos estão lá, presentes nas muitas situações vividas com emoção.
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| Henfil e a ética médica |
Para mim foi meio assustador ver que há uma certa inevitabilidade na desvirtuação do caráter de quem lida com a Medicina. Deve ser minha tendência pessimista, porque o livro até tem um desfecho moral. Mas, ao lembrar que muitas coisas mostradas acontecem de modo muito semelhante ainda hoje, a minha tendência acaba falando alto.
Daí, considerei A Cidadela uma leitura obrigatória. Principalmente para os médicos. Passei a achar estranho médicos que não leram esse livro. Não só para os médicos; obrigatória também para pacientes (nós, né?), para aprendermos a olhar os truques dos doutores e da indústria farmacêutica.
Um livro de impacto
Parece que a criação do sistema de saúde inglês (National
Health Service), cerca de uma década (1948) após a publicação do livro, foi
aprovada como consequência dos debates disparados pela obra. É crível, mas pouco do livro sugere explicitamente uma solução estatal / socialista, como é o NHS. É clara a precariedade do sistema que existia na época na qual a história foi passada e escrita.
Entendi muito mais a origem do viés socialista do NHS quando assisti o excelente documentário O Espírito de '45 do cineasta esquerdista Ken Loach. O filme descreve a campanha, ascensão e governo do Labour Party (trabalhistas) logo após a guerra, sob o mote "se nos unimos e nos esforçamos para vencer Hitler, por que não fazermos o mesmo para reconstruir o país?". Assistir o filme mexe até com o mais empedernido liberal. Deve-se depois assistir o filme Thatcher como antídoto. Rsss...
Logo em 1938, ano seguinte à publicação do romance, foi lançado um filme. Quase uma dezena de outras adaptações foram feitas para a tv e para o cinema, inclusive indiano.
A história
As resenhas do enredo costumam contar coisas demais sobre o livro. Não vou fazer isso.
Em 1921, o recém-formado Dr. Andrew Manson, escocês, 24 anos, vai trabalhar em uma pequena cidade do País de Gales dominada pela mineração de carvão. Seu trabalho associa clínica e pesquisa. A lida com os mais diversos tipos humanos, sejam pacientes, médicos, empresários ou burocratas é um ponto alto do livro. A sua luta diária, o sucesso da sua pesquisa e os benefícios que seguem, o progresso de status que acompanha seu crescimento na carreira, juntamente com a maturidade e as tentações próprias do ofício, transforma-o paulatinamente no oposto do que fora. Naturalmente o romance se encaminha então para crises pessoais que o levam a refletir sobre suas decisões anteriores.
Dito assim, não tem graça nenhuma, né?
Dito assim, não tem graça nenhuma, né?
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| Cartum de Waldez em http://waldezcartuns.blogspot.com.br/2011/06/fale-com-seu-medico.html |
Pelo caminho passamos por profissionais que se aproveitam de suas posições burocraticamente superiores para manter seus privilégios independentemente do mérito ou condição, pela indiferença à assistência aos lugares e indivíduos mais necessitados, pela charlatanice, pelos medicamentos inócuos, pela desinformação e incompetência, pela falta de saneamento, pelos que veem a verdade e são discriminados e até isolados socialmente.
Mas também vemos os que querem alterar a situação nem que tenham que fazer coisas não "legais"; vemos os que percebem a necessidade de empatia pelos seus pacientes; vemos os dedicados.
Muito mais há ainda: complôs para difamação; reconhecimento natural da competência pelos beneficiados por melhoras ou curas; e por aí vai. Tudo dentro de um romance.
O que mais me tocou foi ver a atração que o dinheiro e o status exercem quando se tem poder sobre a saúde das pessoas. Daí médicos que só se interessam pelo ganho social obtidos com pacientes ricos ou famosos. Daí também as redes de médicos que se recomendam mutuamente para alcançar a ascensão mútua. Daí os medicamentos e exames desnecessários, prescritos apenas para manter o cliente, frequentemente hipocondríacos, satisfeito. Daí a ostentação nos hábitos e consultórios. Daí a diferença de atendimento e atenção aos ricos e aos pobres. Daí os preços exorbitantes das consultas particulares. E muito mais. Tudo o que pode ser encontrado na mesma situação ainda hoje.
A primeira parte do livro é claramente baseada na experiência vivida pelo autor como médico em início de carreira. Todavia, sua vida como escritor me parece mais surpreendente. Escreveu muitos best-sellers que foram traduzidos para inúmeras línguas.
Archibald Joseph Cronin (1896-1981) escreveu mais de 30 livros, frequentemente adaptados para as telonas e telinhas. Pelo seu sucesso, há quem diga (NHS Scotland) que ele foi a J.K. Rowling do seu tempo.
Sua força está na narrativa, diálogos e caracterização de personagens interessantes. E também no realismo e na crítica social.
Seu romance The Stars Look Down, de 1935, inspirou o filme Billy Elliot e a canção (composta pelo Elton John) de abertura do musical faz homenagem ao livro.
Mas também vemos os que querem alterar a situação nem que tenham que fazer coisas não "legais"; vemos os que percebem a necessidade de empatia pelos seus pacientes; vemos os dedicados.
Muito mais há ainda: complôs para difamação; reconhecimento natural da competência pelos beneficiados por melhoras ou curas; e por aí vai. Tudo dentro de um romance.
O que mais me tocou foi ver a atração que o dinheiro e o status exercem quando se tem poder sobre a saúde das pessoas. Daí médicos que só se interessam pelo ganho social obtidos com pacientes ricos ou famosos. Daí também as redes de médicos que se recomendam mutuamente para alcançar a ascensão mútua. Daí os medicamentos e exames desnecessários, prescritos apenas para manter o cliente, frequentemente hipocondríacos, satisfeito. Daí a ostentação nos hábitos e consultórios. Daí a diferença de atendimento e atenção aos ricos e aos pobres. Daí os preços exorbitantes das consultas particulares. E muito mais. Tudo o que pode ser encontrado na mesma situação ainda hoje.
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| Charge de Sinovaldo |
O Autor!
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| A. J. Cronin (wikipedia) |
Archibald Joseph Cronin (1896-1981) escreveu mais de 30 livros, frequentemente adaptados para as telonas e telinhas. Pelo seu sucesso, há quem diga (NHS Scotland) que ele foi a J.K. Rowling do seu tempo.
Sua força está na narrativa, diálogos e caracterização de personagens interessantes. E também no realismo e na crítica social.
Seu romance The Stars Look Down, de 1935, inspirou o filme Billy Elliot e a canção (composta pelo Elton John) de abertura do musical faz homenagem ao livro.
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| Livro que inspirou o filme Billy Elliot |
E a tal cidadela?
Ao final do livro era essa a pergunta que eu fazia.
Há duas menções a essa palavra no romance.
A primeira é Christine, que dialoga com ele sobre sucesso na vida no meio da segunda parte do livro:
- Não te lembras de que consideravas a vida como se fosse um assalto ao desconhecido, uma investida para a altura?... Era como se quisesses conquistar uma cidadela que não vias mas que tinhas a certeza de que estava lá, no alto...
A segunda menção é no último parágrafo:
E quando Manson partiu afinal, apressando-se para não perder o comboio, viu que as nuvens acumuladas no horizonte tomavam a forma de uma cidadela.
Antes de fazer a busca pela palavra no texto, fiquei intrigado por não ter entendido exatamente o último parágrafo. E resolvi olhar a versão que eu tinha do texto em inglês. Ahn? não há qualquer referência à palavra citadel, exceto no título! O que Manson vê no céu inglês são nuvens formando "the shape of battlements" - formas de muralhas!
O tradutor estava inspirado!
O tradutor estava inspirado!
Um exame mais acurado mostrou que as duas versões não batiam. Parecem de escritores diferentes. A versão lusa apresenta muito mais detalhes, menciona muitas localidades que não aparecem na versão inglesa que eu tinha. Conclusão: meu ebook em inglês era uma adaptação e não o texto original.
Pode isso Arnaldo?










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