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sábado, 26 de setembro de 2015

A Cidadela, de Cronin. Por que todos devem ler esse livro?

por Luiz Carlos Monte

A ética é possível?

Essa foi certamente uma das leituras mais importantes que fiz em 2014. Surpresa total.

Quando adolescente, costumava ver esse livro na estante do meu pai, mas, com esse título e com o nome desse autor, não me despertou curiosidade. Imaginava um livro sisudo. Preferi desbravar a biblioteca paterna pelos Jorge Amado e Henry Miller. Ah, os hormônios...!

Com os livros eletrônicos, o título me reapareceu.

Detesto fazer escolhas, prefiro sempre que algum algoritmo faça-a para mim. No caso, ler A Cidadela porque era um ebook e tinha acabado de ler um livro de papel – seria o meu segundo livro lido no kobo – e, principalmente, porque na ordem alfabética de autores ele aparecia entre os primeiros: A. J. Cronin. O primeiro livro no kobo que eu li foi da Agatha Christie, como contei aqui. Eu tinha o texto em inglês "The Citadel", mas parti para a versão lusa mesmo.

The Citadel (wikimedia)


A surpresa foi ver como esse livro, escrito em 1937, era atualíssimo. Ao contar a história do médico Andrew Manson, inspirada em fatos vividos e testemunhados pelo autor, também médico, o tema da ética médica é “materializado” no enredo que acompanha a carreira do personagem. O leitor, acompanhando a vida do casal, é capturado pela plausibilidade das situações e de todos os personagens. Mais do que isso, pela realidade dos fatos que, com naturais variações, ocorrem até hoje. A questão ética não é exposta explicitamente. Os conflitos éticos estão lá, presentes nas muitas situações vividas com emoção.

Henfil e a ética médica


Para mim foi meio assustador ver que há uma certa inevitabilidade na desvirtuação do caráter de quem lida com a Medicina. Deve ser minha tendência pessimista, porque o livro até tem um desfecho moral. Mas, ao lembrar que muitas coisas mostradas acontecem de modo muito semelhante ainda hoje, a minha tendência acaba falando alto.

Daí, considerei A Cidadela uma leitura obrigatória. Principalmente para os médicos. Passei a achar estranho médicos que não leram esse livro. Não só para os médicos; obrigatória também para pacientes (nós, né?), para aprendermos a olhar os truques dos doutores e da indústria farmacêutica.

Um livro de impacto

Parece que a criação do sistema de saúde inglês (National Health Service), cerca de uma década (1948) após a publicação do livro, foi aprovada como consequência dos debates disparados pela obra. É crível, mas pouco do livro sugere explicitamente uma solução estatal / socialista, como é o NHS. É clara a precariedade do sistema que existia na época na qual a história foi passada e escrita.

Entendi muito mais a origem do viés socialista do NHS quando assisti o excelente documentário O Espírito de '45 do cineasta esquerdista Ken Loach. O filme descreve a campanha, ascensão e governo do Labour Party (trabalhistas) logo após a guerra, sob o mote "se nos unimos e nos esforçamos para vencer Hitler, por que não fazermos o mesmo para reconstruir o país?". Assistir o filme mexe até com o mais empedernido liberal. Deve-se depois assistir o filme Thatcher como antídoto. Rsss...


Logo em 1938, ano seguinte à publicação do romance, foi lançado um filme. Quase uma dezena de outras adaptações foram feitas para a tv e para o cinema, inclusive indiano.


A história

As resenhas do enredo costumam contar coisas demais sobre o livro. Não vou fazer isso.

Em 1921, o recém-formado Dr. Andrew Manson, escocês, 24 anos, vai trabalhar em uma pequena cidade do País de Gales dominada pela mineração de carvão. Seu trabalho associa clínica e pesquisa. A lida com os mais diversos tipos humanos, sejam pacientes, médicos, empresários ou burocratas é um ponto alto do livro. A sua luta diária, o sucesso da sua pesquisa e os benefícios que seguem, o progresso de status que acompanha seu crescimento na carreira, juntamente com a maturidade e as tentações próprias do ofício, transforma-o paulatinamente no oposto do que fora. Naturalmente o romance se encaminha então para crises pessoais que o levam a refletir sobre suas decisões anteriores.

Dito assim, não tem graça nenhuma, né?

Cartum de Waldez
em http://waldezcartuns.blogspot.com.br/2011/06/fale-com-seu-medico.html


Pelo caminho passamos por profissionais que se aproveitam de suas posições burocraticamente superiores para manter seus privilégios independentemente do mérito ou condição, pela indiferença à assistência aos lugares e indivíduos mais necessitados, pela charlatanice, pelos medicamentos inócuos, pela desinformação e incompetência, pela falta de saneamento, pelos que veem a verdade e são discriminados e até isolados socialmente.

Mas também vemos os que querem alterar a situação nem que tenham que fazer coisas não "legais"; vemos os que percebem a necessidade de empatia pelos seus pacientes; vemos os dedicados.

Muito mais há ainda: complôs para difamação; reconhecimento natural da competência pelos beneficiados por melhoras ou curas; e por aí vai. Tudo dentro de um romance.



O que mais me tocou foi ver a atração que o dinheiro e o status exercem quando se tem poder sobre a saúde das pessoas. Daí médicos que só se interessam pelo ganho social obtidos com pacientes ricos ou famosos. Daí também as redes de médicos que se recomendam mutuamente para alcançar a ascensão mútua. Daí os medicamentos e exames desnecessários, prescritos apenas para manter o cliente, frequentemente hipocondríacos, satisfeito. Daí a ostentação nos hábitos e consultórios. Daí a diferença de atendimento e atenção aos ricos e aos pobres. Daí os preços exorbitantes das consultas particulares. E muito mais. Tudo o que pode ser encontrado na mesma situação ainda hoje.

Charge de Sinovaldo


O Autor!

A. J. Cronin (wikipedia)


A primeira parte do livro é claramente baseada na experiência vivida pelo autor como médico em início de carreira. Todavia, sua vida como escritor me parece mais surpreendente. Escreveu muitos best-sellers que foram traduzidos para inúmeras línguas.

Archibald Joseph Cronin (1896-1981) escreveu mais de 30 livros, frequentemente adaptados para as telonas e telinhas. Pelo seu sucesso, há quem diga (NHS Scotland) que ele foi a J.K. Rowling do seu tempo.

Sua força está na narrativa, diálogos e caracterização de personagens interessantes. E também no realismo e na crítica social.

Seu romance The Stars Look Down, de 1935, inspirou o filme Billy Elliot e a canção (composta pelo Elton John) de abertura do musical faz homenagem ao livro.

Livro que inspirou o filme Billy Elliot


E a tal cidadela?

Ao final do livro era essa a pergunta que eu fazia.

Há duas menções a essa palavra no romance.

A primeira é Christine, que dialoga com ele sobre sucesso na vida no meio da segunda parte do livro:
- Não te lembras de que consideravas a vida como se fosse um assalto ao desconhecido, uma investida para a altura?... Era como se quisesses conquistar uma cidadela que não vias mas que tinhas a certeza de que estava lá, no alto...
A segunda menção é no último parágrafo:
E quando Manson partiu afinal, apressando-se para não perder o comboio, viu que as nuvens acumuladas no horizonte tomavam a forma de uma cidadela.
Haja memória para o leitor associar essa sentença à de muitas páginas anterior.



Antes de fazer a busca pela palavra no texto, fiquei intrigado por não ter entendido exatamente o último parágrafo. E resolvi olhar a versão que eu tinha do texto em inglês. Ahn? não há qualquer referência à palavra citadel, exceto no título! O que Manson vê no céu inglês são nuvens formando "the shape of battlements" - formas de muralhas!

O tradutor estava inspirado!

Um exame mais acurado mostrou que as duas versões não batiam. Parecem de escritores diferentes. A versão lusa apresenta muito mais detalhes, menciona muitas localidades que não aparecem na versão inglesa que eu tinha. Conclusão: meu ebook em inglês era uma adaptação e não o texto original.

Pode isso Arnaldo?

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Spandauer Vorstadt

por Luiz Carlos Monte

Em busca de uma nipo-hamburgueria

Último dia de Berlim, 19 de julho de 2015. Depois do museu do Pérgamo, ainda dava um tempo para mais um passeinho explorando a região de Spandauer Vorstadt, uma das regiões que merecia uma visita e não tivemos tempo de explorar suficientemenete, como contei no post Berlim, julho de 2015

Spandauer Vorstadt

Vorstadt quer dizer subúrbio, o que deve ter sido algum dia. Hoje, Spandauer Vorstadt faz parte do mitte (centro) de Berlim. Sua parte oriental chama-se Scheunenviertel, pedaço que nem fomos. Frequentemente os guias se referem a todo Spandauer Vorstadt como sendo Scheunenviertel, mas o certo é o contrário.

Spandauer Vorstadt e Scheunenviertel (clique para ampliar).

Nos dois dias apressados que passeamos aí, vimos e apreciamos: (clique no mapa acima para ver os locais)
  1. o memorial dos judeus (falo mais dele adiante neste post), 
  2. o parque Monbijou
  3. o Hackescher Markt com seus bares (fomos no Weihenstephaner), 
  4. o Hackescher Hof (uma interessantíssima e intrincada galeria); 

  5. passamos

  6. pelo Strandbar Mitte (bar na beira do rio), 
  7. pela Rosenhöfe (outra galeria), 
  8. pela Sophienkirche (igreja de Sta. Sofia) 
  9. e pelo antigo cemitério judeu (Alte Jüdische Friedhof).

  10. Parece que ainda há outras atrações nessa região:

  11. o Clärchens Ballhaus (antigo salão de dança), 
  12. o Kunst-Werke (KW. Arte contemporânea, com o Café Bravo, famoso pelos seus bolos), 
  13. o Heckmann Höfe (outra galeria, com jardim e uma loja de balas estilo antigo, a Bonbonmacherei), 
  14. caminhar pela rua Oranienburger 
  15. e a Nova Sinagoga (Neue Synagoge) que vimos de longe várias vezes. 

  16. Há também

  17. o teatro de revista Friedrichstadt-Palast
  18. o centro de arte Kunsthaus Tacheles
  19. o prédio dos correios (Postfuhramt)
  20.  e certamente outras coisitas.

Große Hamburger Straße

Após o museu, no nosso último dia de Berlim, como a necessidade de comer nos guiava, tomamos uma direção determinada, seguindo a Große Hamburger Straße, que imaginei ser a "rua do hambúrguer grande", rumo ao Shiso Burger.


Seguimos a rota que no mapa acima está desenhada com uma linha roxa, saindo do Pergamonmuseum. No início da Burgstraße, no James-Simon-Park, vimos umas pessoas em volta de uma escultura e fomos lá ver. É um grupo escultório muito estranho, em memória do educador Adolph Diesterweg. 


Memorial a Adolph Diesterweg (wikipedia)

Minha foto é só de um detalhe do grupo escultório.

No início dessa rua Große Hamburger, há o antigo cemitério judeu e, na calçada dele, o grupo escultório Jüdische Opfer des Faschismus (judeus vítimas do fascismo) de Will Lammert, à guisa de memorial.

Memorial Jüdische Opfer des Faschismus (judeus vítimas do fascismo)

Detalhe

O local foi cemitério judeu desde 1672, até ser destruído pelos nazistas.

Mais adiante na Große Hamburger Straße, vem a igreja de Santa Sofia. Vimos de longe porque nosso objetivo era outro...

Igreja de Santa Sofia (Sophienkirche)

Shiso Burger

Comer um hambúrguer sentado era uma boa pedida. A preocupação com a hora de partir, o cansaço da fila e da visita ao museu e a tal da fome serviram de estrela de belém. Alguém tinha recomendado e fomos ao Shiso Burger. Seguimos a Große Hamburger Straße até a Auguststraße, viramos à direita e no número 29 achamos o lugar.

É bem pequeno, mas dobra seu espaço com umas mesas na calçada. Sabíamos que é procuradíssimo e fica apinhado com longas horas de espera (tem gente que pede pra viagem e come em alguma praça). Mas ainda nem eram 18h do domingo. O nosso famoso truque de só ir a restaurante nos horários mortos funcionou mais uma vez. Logo-logo conseguimos um lugarzinho para dois, na parte de dentro, como queríamos, porém meio espremidos por um casal espaçoso ao lado.

Não precisa perguntar a senha do wi-fi !!
Tenho preguiça de escolher prato. Daí gostei do lugar só ter 9 opções, todas hambúrgueres: Uma de carne angus; outra, do mesmo acrescido de queijo; outras opções são de camarão, atum, salmão e duas veggies (de cogumelos ou de berinjela). Pedimos o cheeseburger de angus, carne de primeiríssima qualidade. Além da carne e do pão excepcionais, os sanduíches contêm ingredientes, alguns orientais, caprichosamente os tornando únicos. Não comerás algo semelhante em outro lugar. E se não tivéssemos pedido vinho e coca-cola, beberíamos refrescos e drinks também únicos.

Sim, o sanduíche não é grandão.

A maioria das mesas pedira batatas fritas torcidas, nós imitamos. Tínhamos visto isto em vários lugares, mas ainda não experimentado. É bem bom, mas esfria mais rápido.

Twisted potato.


Tudo vem servido em steamers de bambu, o que é bonitinho e dispensa a lavagem de pratos...

O lugar é simpático, provavelmente pelo público que o frequenta (ok, é hipster), já que o ambiente é bem simples e o atendimento lento e não carinhoso. A decoração usa uma madeira clara que, no balcão do caixa, lembra caixotes. Ou seja, rústico chique. A Adriana se assustou um pouco com o chão escorregadio de gordura. A comida estava bem gostosa (lembrando sempre que trouxéramos os principais temperos: fome, cansaço e boa vontade).

Era o último passeio da viagem. No início dela, evitávamos gastar notas para não ter que ficar sacando; pagávamos tudo no cartão (crédito ou débito). Talvez evitássemos o Shiso Burger, se tivéssemos por lá passado, pois só aceita dinheiro vivo.

Só dinheiro vivo. Antipático? Não com o Johnny avisando.

Shiso

Quem olhar o menu do restaurante, verá que o tal hambúrguer de atum é chamado de Shiso Burguer, o mesmo nome da casa, e contém uma folha de shiso como ingrediente. O próprio site descreve laconicamente que shiso "é uma folha". E parece que sem graça.

Folha de Shiso. Comumente serve como leito de wasabi ralado (wikipedia).


sábado, 5 de setembro de 2015

Alimento

por Fatima Flórido Cesar

Tem todo tipo de alimento. E tem todo tipo de fome. Às vezes é fácil, às vezes difícil acertar o alimento capaz de saciar aquela fome.

É que nem sede. Se você tem sede de água, só serve água e não tem palavra para descrever a delícia que é encontrar o que se anseia. Matar a sede.

Tem todo tipo de alimento. Isso também porque somos muitos no dentro da gente. Então, cada faceta do ser pede uma comida que traz promessa de saciedade. Também, se a gente é feita de um jeito tal, tem comida que nem entra.

Por exemplo, tem gente que não gosta de shopping. Eu já adoro: é uma faceta minha que me destrambelha. É vizinha de outras facetas tão diferentes: tipo gostar de escrever, ler Clarice Lispector, ser pescada por filme profundo.

Acho que sou múltipla. Todo mundo é: casa cheia de andares, portas e janelas. Mas acho que sou múltipla demais: tenho fome de shopping, de livro de suspense e de profundo. Ás vezes dá confusão: porque quem me conhece de shopping desconhece o lado do profundo. E vice-versa: causa espanto combinar poesia com consumismo.

Também gosto de livro de suspense, gosto que mora ao lado do amor pela poesia. Poesia é um alimento que me dá muita sustança e se estende para além dos livros: porque vai para música e pra filme. Música sacia os sentidos, pesca sonhos. Aliás, tem alimento que entra na categoria de sonho: sentir profundo, poesia, música, filme especial. Especial, porque nem todo filme faz sonhar. Tem outros tipos que também são alimento: comédia, por exemplo. Mas tem que gostar.

Ontem fui assistir uma comédia: era o que a vida me oferecia. Mas não achei graça e ainda saí de barriga vazia. Tinha fome de filme profundo.

Profundo. Profundo. Palavra batida, né? Mas não tem outra para fazer um laço com sonho. Ah! Tem a palavra encantamento. Isso! Tem fome de encantamento. E tem coisa melhor do que quando essa fome é saciada? A gente ganha um tipo de nutriente que torna a pessoa encantada.

Ah! Tenho outra fome também que para quem conhece meu lado de sonho, pode até estranhar. Adoro novela e já gostei de programa bobo. Dizem que novela é rasa, e deve ser mesmo, mas eu viajo, distraio e sempre tem paixão. Paixão me fisga e ai pode até ser paixão barata. Paixão é um alimento que me atrai desde a adolescência. E continua. Paixão também atrai muita gente: mora ao lado do encantamento.

Também cada conversa é um tipo de alimento. Tem conversa que dá alma ,tem conversa que distrai, tem conversa que suga e tem conversa que entedia. Bem, tem muitos outros tipos. Sou muito sensível à conversa. Conversa sobre roupa me anima. Mas tem conversa que me desperta um desejo de comunicação e dá vontade de não sair de perto. São conversas com pessoas que compartilham o essencial da vida. Mas tem conversa que me deixa murchinha e eu vou ficando distante, distante. Sem alma.

A pessoa tem fome de todo tipo de alimento: desde aqueles que fazem sonhar até aqueles que distraem a gente de um jeito simples, pode ser até bobo ou barato. A gente é muitos e a fome é grande. Quando fica fraquinha é sinal de tristeza, inanição de alma. Quero fome. Muita fome. Quero ficar cheia de vida: desde vestido bonito até verso que diz “a praia inicial da minha vida”(Sophia de Mello Breyner).

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

A alegria do possível

por Fatima Flórido Cesar

Eu teço sonhos e deles eu preciso cuidar porque são minha entrada para a realidade.

Os sonhos preparam o fazer, o existir; inventam caminhos que ora se dão em terra firme, ora se dão em barcos desbravadores. Os sonhos nos conduzem para o mais além, porque nascemos com a vocação para desdobramentos em infinitas bifurcações.

Mas chega a hora de voltar para casa. 

Então, nem tanto ao mar, nem tanto à terra; todas as aderências são perigosas, mesmo que o projeto seja um viajar incessante. Pois a vontade de ir perde seu potencial de novidade, caso se transmute em furor e em esquecimento do lar. 

Esse deslocamento infindável nos engana: tem ares de saudável liberdade, de desapego. Entretanto, a aderência se apresenta pelo furor de movimento incessante: a adesão à vontade de partir. É no entre, no relativo, que podemos ficar confortáveis: a saúde e o bem viver se situam no trânsito e no possível. 

Porque o sonho é manso, ele garante o tal possível. Imaginarmo-nos de determinado modo, alto ou distante do que se é, é fruto das armadilhas das idealizações, estas distintas do sonho. Se, por um lado, o ideal do eu nos oferta o cultivo de ideais, por outro, nos aprisiona se queremos ser de tal jeito, de um modo que se distancia do simplesmente ser. 

Uma coisa é sermos idealistas, modo de ser sempre bem-vindo, outra coisa é a fixidez nas idealizações. Embate difícil este entre querer ser longe de sua própria natureza e sossegar no próprio modo de existir, naquilo que nos cabe. Nada fácil, pois para essa tarefa precisamos começar a nos desvencilhar dos mandatos parentais, daquilo que nossos pais sonharam em nós. 

Na verdade, um tanto do que se teceu enquanto fomos gestados e cuidados precisa permanecer. É nossa herança. Mas o que se quis demais, a missão que nos foi destinada: é nosso trabalho disso nos afastarmos até chegar ao possível, ao encontro das águas da originalidade com a tradição. 

Sossegar: das alegrias mais genuínas é essa que nos reconcilia com nosso tamanho, com o que nos cabe, sem abrir mão do mais além que nos é destinado. Mais um paradoxo, esse entrelaçar do voo com o pouso, com o andar, com o mancar: a alegria do possível.

Amor

por Fatima Flórido Cesar

Custei a entender o amor. Diferente da paixão, esta clara e fácil de ser definida. Letras não faltavam para dizer a paixão. Agora penso, nessa hora da vida, que essa transparência do entendimento da paixão se dava no que ela acontece no corpo. Ficava fácil assim compreendê-la: coração batendo, mãos úmidas, pernas trêmulas; corpo todo envolvido na acontecência do encontro.

Já o amor, se me pedissem: defina-o, não sabia. O amor-névoa, o amor-barato, a palavra cessava na sua existência que escapava das mãos e do entendimento. Até que a sabedoria dos anos vem trazendo devagar a compreensão: o amor faz parte do mundo invisível. Não precisa de corpo para sua aparição, surge atrás dos mistérios da vida. Não é que seja desencarnado; mas surge no corpo de outra forma: ou manso no decorrer das horas ou em seu avesso, quando a ameaça da perda traz com toda força a presença do corpo-assustado.

Dizem que primeiro vem a paixão, depois o amor: disso não sei falar. 
Acho simplório até, tão rasa explicação. Só penso que custei a entender por conta da condição de laços invisíveis, esses que tecem a trama do amor, diversa da intensidade, da possessão que constitui o rosto da paixão.

Só penso que custei a entender porque recusava definições fáceis, declarações banais; gestava em mim o sentido de algo que se tecia anos e anos, lado a lado, estreitos nós, invisíveis que sejam, mas que se apresentam na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Subi montanhas, escavei buracos, vislumbrei atrás de nuvens: ganhei força para adentrar esse mistério, passo a mão com leveza em seu rosto, prescruto-o se está bem e, sem ele saber, juro amor eterno. 

Talvez ele tenha entendido antes de mim, mas, sem nada dizer, também faça secretas juras de amor.

domingo, 16 de agosto de 2015

John Singer Sargent em Washington, DC.

Fotografando Sargent

por Luiz Carlos Monte
Autorretrato (1907) - Galleria degli Uffizi (domínio público)

Nunca pensava em ir aos Estados Unidos.
Tendo dinheiro, iria sempre para a Europa.
Mas minha irmã Lílian foi morar lá...

Aí fui visitá-la.
Em 2008.

Eu e Dri com minha irmã, sobrinha e cunhado em Washington.

Essas são as duas maiores atrações americanas:
  1. a hospitalidade da minha irmã;
  2. os quadros de John Singer Sargent, que eu só conhecia de estampas em livros e internet.

Carnation, Lily, Lily, Rose (1885) - Tate Britain (domínio público)

Fiquei encantado com Washington, D.C.
É realmente um dos lugares para se visitar no mundo.
Cidade planejada para ser a vitrine da grande nação americana.

Uma enorme quantidade de museus. E... quadros do J.S. Sargent.

Que, ao vivo, são mais impactantes.

Indolência - National Gallery of Art - Washington, D.C.

Sei que, na história da pintura, ele não é dos maiores, dos revolucionários. É daqueles pós-, no caso, pós-impressionista. Um Eliseu Visconti de lá.

Mas para quem está atrás de curtir a Beleza, com B maiúsculo...

Morning walk - Caminhada matinal (1888) - coleção privada (wikimedia commons).
Mrs. Violet Ormond, irmã de Sargent

Catadores de ostras em Cancale (1878) - Corcoran Gallery of Art, Washington DC.

Pintou muitos retratos das socialites da época - início do séc XX.
Com isso ganhou a grana que o permitiu viajar pelo mundo pintando Marrocos, Veneza, a França, ...

Cena de rua em Veneza (1882) - National Gallery of Art, Washington, DC (domínio público).

Essas mulheres de nomes imponentes eram as madames dos poderosos de então (tataravôs dos poderosos atuais). Algumas bonitas. Sempre super bem vestidas com o que havia de melhor na alta-costura.

Elizabeth Winthrop Chanler - Smithsonian American Art Museum, Washington, D.C.

O grande lance dele era conseguir espelhar a pessoa daqueles rostos e o espetáculo daqueles modelitos.

Mrs. Joshua Montgomery Sears (1889) - Museum of Fine Arts, Houston, Texas

Foi pintora, fotógrafa e patrona das artes e colecionadora.
Amiga (não à toa) de Sargent - que capturou sua inquietude e aristocracia.
Dá pra viajar no vestido.

Só era grande mesmo quem tinha um retrato enorme, imponente, de sua mulher pintado pelo Sargent (aqui, no Brasil, basta ela ser destaque em uma escola de samba).

Betty Wertheimer (c. 1908) - Smithsonian American Art Museum, Washington

Mrs Henry White (1883) - Corcoran Gallery of Art, Washington, D.C.

Mrs. Adrian Iselin (1888) National Gallery of Art, Washington, DC.

Washington tem muitos museus e muitas pinturas de Sargent espalhadas por eles.

Fotografei em:
  1. National Gallery of Art
  2. Corcoran Gallery of Art
  3. American Art Museum
  4. National Portrait Gallery
  5. Freer Gallery
Leonard Wood (1903) - National Portrait Gallery, Washington, DC.

Mas o que eu gosto mais não são os retratos. São os quadros que têm parte em penumbra suave - praças no Marrocos, um pequeno busto em um jardim. Nessas partes de penumbra, ele arrebentava mais ainda.

Breakfast In The Loggia (1910) - Freer Gallery, Washington, D.C.

Voltarei a falar sobre Sargent.

domingo, 9 de agosto de 2015

Museo Sorolla

por Lúcia Mattoso

originalmente publicado em luciadizni

Ainda na inspiração dos impressionistas, trago aqui alguns registros da minha visita ao Museo Sorolla em Madri, em dezembro de 2008. O museu é localizado na casa em que viveu Joaquín Sorolla García e sua família, onde o artista mantinha seu ateliê. A pedido da viúva de Sorolla, em 1932 a casa foi transformada em um museu em memória de seu marido.

Mommy no jardim do Museu Sorolla
Eu congelando na escadinha de acesso à casa

O estilo de Sorolla recebe muitas classificações: desde o título de impressionista - que tantos de seus contemporâneos receberam - até luminista ou neoimpressionista. "Ismos" a parte, é notável nos quadros de Sorolla a sensação de movimento gerada pela combinação de borrões de cores além do registro dos efeitos da luz como foco de suas telas. Não por acaso, como muitos colegas da época, a água e os reflexos são temas recorrentes em seus quadros.


El baño del caballo (1909)

El balandrito (1909)

Outra técnica para transmitir a sensação de movimento são os enquadramentos que "cortam" elementos do quadro como pessoas ao fundo e até membros do personagem em destaque, como vemos muito na obra de Degas.

Nadadores, Jávea (1905)

"Sorolla foi a Jávea pela última vez no verão de 1905. Esquece-se das indústrias da cidade e realiza numerosas composições de crianças e adolescentes. A paleta adquire uma intensidade inusitada pelos fortes contrastes de dourados, azuis marinho e esmeraldas, que devido à profundidade de suas águas são totalmente reais." - texto do catálogo do Museu Sorolla.

Mas não apenas de crianças na praia consistiam as temáticas do pintor espanhol. Sorolla buscou pintar a realidade da época e passar em alguns de seus quadros a sensação de desconforto, como no espaço limitado em que se encontram as personagens da polêmica obra Trata de Blancas.

Trata de Blancas (1884)

Já a opção de temáticas mais pessoais costuma ser comparada com as composições do colega americano Sargent. Essa relação entre suas obras inspirou a exposição Sargent / Sorolla, que visitou dentre outros museus o Thyssen-Bornemitza em Madri.

Madre (1895)

Por se tratar do ambiente em que Sorolla viveu em pintou, o museu tem um charme especial, que pode ser averiguado na visita virtual do museu.

Interior do museu - visualização a partir da visita virtual
 Imperdível!

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Berlim, julho de 2015

Qual é a de Berlim?
por Luiz Carlos Monte
Colé a de Berlim???

Era uma quantidade considerável de pessoas dizendo "Berlim é o máximo!". 
Eu pensava "tenho que ver", já que tinha perdido o medo da Alemanha em outras viagens (Vale do Reno e Baviera).

Adriana, a patroa, queria ir à Praga, que também não conhecíamos, e Berlim era ali pertinho. E no caminho tinha Dresden!

 "OK, é essa a viagem que faremos!". 

Fizemos.


Indo a Berlim, encontraríamos uns camaradas.

Costumo estudar muito os locais antes de viajar. Um dia eu conto. Mas o primeiro semestre de 2015 foi tormentoso... grandes decisões... sufocos... essas coisas.

O resultado é que só deu pra "planejar" Praga.

Planejar-entre-aspas quer dizer anotar opções e observações. 
Na hora se escolhe o que fazer.


Não dá para seguir roteiros. Faz-se o que dá vontade na hora.

Um dia apareceu alguma foto de Český Krumlov. Basta ver uma para se querer ir lá. Fica na República Tcheca, quase fronteira com a Áustria. Repensamos a viagem para, além de Praga, Dresden e Berlim, passearmos pelo interior da Tchecolândia.

Não me acostumo com esse tal nome "República Tcheca". Tantos anos de Tchecoslováquia...


E Berlim com isso?

E Berlim com isso?

Dos trabalhos mais chatos de se programar uma viagem, para mim, é escolher hotéis. Essa parte é da Adriana. Eu só ajudo um pouco atrapalhando. A maior prioridade é localização. Aprendemos isso sendo muito felizes com hotéis na própria Piazza della Signoria em Florença, na Via del Corso em Roma, na Plaza del Sol em Madri.

Onde seria a boa localização em Berlim?


O gênio aqui resolveu fazer um mapa com as atrações estreladas de Berlim (usando as estrelas do Michelin). Uma versão do mapa é essa aqui:

As azuis são atrações três estrelas, as rosas são duas e as amarelas uma.

Cientificamente ficamos no tal centro geográfico das atrações.

Estranhei que todo mundo que tinha adorado Berlim não tinha ficado tão perto das atrações como eu esperava ficar.


Agora que fui, entendi.



Vitrine com mapa de Berlim e reflexo da "atração" Torre da TV.

Pode não ter nada a ver comparar Berlim com São Paulo. Mas com um pouquinho de esforço dá para entender a ideia.

Adoro São Paulo. Muito. Pena que é longe...

São Paulo tem o MASP, o Ibirapuera do Niemeyer e do Burle Marx, tem a Pinacoteca e por aí vai.
Mas não são essas adoráveis atrações (estreladas) que me fazem gostar de São Paulo. 


É a Vila Madalena com a Mercearia São Pedro, é Moema com seu ar de Rio de Janeiro, são os Jardins, a arquitetura na Berrini e em muitos outros lugares, são o fervo, os eventos culturais, as lojas e os ingredientes que não se acham no Rio.

Berlim tem algumas (poucas) grandes atrações: os museus, o Reichstag, o portão de Brandenburgo, não muito mais que isso. Mas o lance de Berlim não é por aí. 



Bueiro com as principais atrações de Berlim

O charme está na vida de alguns bairros, que nem atrações estreladas têm.

Sobre esses, os guias são sucintos, seguindo o padrão de guias: destacam uma igreja, um prédio, uma praça nem tão legal. Uns blogs ainda falam de bares, restaurantes. É pouco.

Por exemplo, o Michelin menciona os bairros Scheunenviertel (ver meu post Spandauer Vorstadt), Prenzlauer Berg e Kreuzberg.


Isso os guias não mostram.

Resumindo: ficamos em Berlim os últimos 5 dias da nossa viagem. 

Ainda tem isso: últimos dias significam reservar tempo para comprar besteiras, fazer malas, providências gerais e diminuir o ritmo para aliviar o cansaço. 

Sabíamos desde quando planejamos a viagem que seria pouco tempo. 

Na verdade eram só 4 dias, um era para ir a Potsdam, que acabamos não indo. 

Também não fomos ao castelo Charlottenburg, parte oeste do nosso roteiro, que ocuparia um dia inteiro.

Ou seja, apenas arranhamos Berlim. 

Mas foi de propósito, sabíamos que pretenderíamos voltar algum dia. 
Pelo visto vão ter que ser várias vezes.

Que nem São Paulo.



Berlim ao por do sol.
Voltaremos.