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sexta-feira, 25 de março de 2022

Um convidado à mesa



Esta é a minha tradução para o conto Un invito a tavola
escrito por Luigi Pirandello e publicado em 1902.

Traduzi do modo mais literal que consegui: usando palavras as mais próximas do texto original, mantendo a pontuação e sintaxe do Pirandello e não reinterpretando o significado com palavras mais atuais ou usuais. Evidentemente isso não foi sempre possível. Todavia, o tratamento pessoal – uso de tu, vós, o senhor, você – eu não respeitei.

Acho que o resultado ficou bastante curtível, prazeroso.

Para quem não está acostumado com o Pirandello, recomendo que não procurem nele qualquer julgamento de seus personagens – personagem bom x mau, superior x inferior. Seu humor é como uma caricatura – um retrato reconhecível, mas com traços exagerados. Pirandello nasceu e viveu na região da história contada; seus personagens e situações são retratos/caricatura que ele viu de bem perto com um olhar etnográfico.

O original em italiano está em outra página aqui no blog: "Un invito a tavola"


Um convidado à mesa

– Isso bastará? não bastará? – se perguntavam, olhando–se nos olhos, na cozinha, as três irmãs: Santa, Lisa e Angelica Borgianni, empenhadas há dois dias em preparar uma refeição da gran signori.

[da gran signori: (Como se fosse) para fidalgos, para nobres.]

Santa, a mais nova, era mais alta que Angelica; Angelica, de Lisa, a mais velha. Todas as três, além disso, peitudas e cadeirudas, podendo competir com os irmãos em estatura colossal e em força hercúlea.

– Família Borgianni: oito colunas! – costumava dizer Mauro, o menor dos irmãos e da família inteira.

Três irmãs, portanto, e cinco irmãos: Rosario, Nicola, Titta, Luca e Mauro, em ordem de idade.

Rosario e Nicola dedicavam–se ao campo; Titta cuidava da jazida de enxofre, próxima da aldeia de Aragona; Luca era o empreiteiro para serviços públicos de quase toda a região; Mauro tinha paixão pela caça e era o caçador.

[a jazida de enxofre: A Solfara Mandra. (No texto original Zolfara). Um terreno vulcânico explorado pelos seus minerais, principalmente o enxofre.]

[Aragona: aldeia da província de Agrigento na Sicília, distando cerca de 15 km desta. Na época com cerca de 12.000 habitantes.]

Rosario Borgianni era famoso pelos seus furores juvenis de besta feroz. Contavam dele as mais audaciosas aventuras nos tempos nefastos do brigantaggio, naturalmente acrescidas e embelezadas pela fantasia popular. Até mesmo se dizia que ele tivesse um dia encarado uma dúzia de bandoleiros, dos mais sanguinários, e tivesse matado todos. Exagero! Quatro apenas: dois, ali mesmo, e os outros dois ao longo da estrada que desce de Comitini a Aragona.

[brigantaggio: Banditismo endêmico no sul da Itália por séculos e eventualmente ligado a revoltas populares. Com semelhanças com o cangaço brasileiro.]

[bandoleiros: briganti no texto original.]

[Comitini: aldeia a cerca de 20km ao norte de Agrigento. Na época com cerca de 3.000 habitantes, hoje com menos de 1.000. Aí Pirandello viveu parte de sua juventude e seu pai era proprietário de uma Solfara.]

[Comitini a Aragona: cerca de 3km.]

Também de Mauro se contavam muitas das boas. Um dia, por exemplo, à caça, caiu do alto do Monte delle Forche; rolou três vezes, despencando em três valões selvagens e, a cada vez, se erguendo com o bacamarte alçado em uma mão, exclamava:

– Sorte, que eu sou dançarino!

Não relatavam todavia uma fratura na perna direita e um leve traumatismo cerebral: ele, cujo cérebro na verdade nunca teve um bom funcionamento.

Uma outra vez, na caça, avistou três ou quatro estorninhos sobre o dorso de uns bois pastando em uma colina. Quieto e abaixado, se aproximou e, quieto, curvado, e ao alcance de um tiro, bum! um disparo de espingarda. Salta do seu posto, possuído por todos os demônios, o boiadeiro.



[Um estorninho]

– Alto lá! – gritou–lhe Mauro, em guarda. Se você der mais um passo, viro–te de pernas para o ar!

– Mas como, senhor Mauro! Os meus animais...

– E tu não sabe, imbecil, que onde vejo caça, atiro?

– Mas mesmo em cima do gado?

– Mesmo na cabeça do Menino Jesus, se eu confundir o Espírito Santo com um pombo!

 

O jantar parecia posto para trinta convidados, por baixo. O convidado no entanto era um só, e nem mesmo sabiam quem era. Sabiam somente que chegaria no dia seguinte de Comitini, e que lhe deviam esse jantar a título de agradecimento ao refúgio prestado ao irmão Luca, o empreiteiro, foragido por quinze dias.

Homicídio? Sim... isto é, não; mas quase... Vejam: Luca Borgianni pegou por empreitada a construção da estrada entre Favara e Naro. Uma tarde, após o serviço, voltando a cavalo, em um certo ponto do caminho viu uma sombra se estender ameaçadora sobre o chão de cascalho da estrada iluminado pela lua. Alguém, sem dúvida, estava ali a postos, encapuzado. Luca o vislumbrou, por sorte; ou melhor, vislumbrou o capuz. E achou que o patife estaria acocorado para se proteger da lua que vinha lentamente da colina à esquerda.



[Estrada entre Favara e Naro]

– Quem está aí?

Nenhuma resposta.

Tratá; tratá: engatilhou, por precaução, a espingarda. Um grilo começara a cantar.

Então Luca, de novo, parando o cavalo:

– Quem está aí?

Silêncio. Só o grilo a cantar.

– Vou contar até três! – gritou enfim Luca, empalidecendo. – Se não responder, faça o sinal da cruz. Um!

A sombra não se mexeu.

– Dois!

A sombra, ali, parada, impassível. Apenas o grilo cantando.

– Três!

E um tiro. Alguma coisa saltou pelo ar: e Luca, dá–lhe cavalo! Chegou a casa, sem fôlego. Os irmãos e irmãs acorreram à sua volta.

– Escondam–me! Escondam–me!

– Por que? Ferido?

– Não... morto...

– Você? Quem?

– Um... não sei... com a espingarda... Escondam–me.

Os irmãos tranquilizaram–no e levaram–no, provisoriamente, para a adega na parte de baixo da casa. Enquanto isso, Mauro saiu de casa para apurar se na região já buzinavam alguma coisa a respeito do homicídio. Rosario e Titta aguardavam impacientes que Luca, ali na adega, recobrasse um pouco as forças para retirá–lo para um lugar mais seguro: já tinham pensado no refúgio, na casa de um parceiro deles em Comitini, para onde ele poderia se transferir nessa mesma noite, cavalgando para o portão da aldeia. Nicola, armado até os dentes, partira para rondar pelo lugar designado pelo irmão, para saber quem fora a vítima. Luca enfim pode se meter a caminho. No dia seguinte, ao amanhecer, apareceu Nicola.

– E então?

– Nada! Encontrei somente um casaco com o capuz na terra. É certo que o ferido se arrastou até a aldeia, deixando o casaco ali, esburacado em várias partes... Luca atira como um deus! Ele deve tê–lo ferido mortalmente, a julgar pelo casaco... Eu não entendo: dois buracos grandes assim no capuz, ou seja, na cabeça... e fugiu assim mesmo!

Passaram–se três dias de expectativa angustiante. Não se sabia de nada na aldeia; nem nas aldeias vizinhas se tinha notícia de qualquer ferimento ou caso de morte violenta. Depois de dezesseis dias, enfim, vieram saber que um camponês, trabalhando naquelas cercanias, usou como cabide um marco de pedra da beira da estrada; tinha encasacado a pequena coluna com o capote, e à tarde retornou à aldeia, esquecendo–se dele. Luca tinha atirado contra aquela coluninha, confundindo–a com alguém de tocaia.

Agora a comida estava ali, pronta desde a véspera, sobre a mesa comprida no meio do salão: uma pálida porchetta coberta de louro, recheada de macarrão, em uma assadeira; sete lebres sem pele rodeadas de tordos, mortos por Mauro; dois perus peitudos; cordeiro; tripa e couro fatiado; pés de boi na gelatina; um grande peixe ao molho; uma torta enorme; e depois um regimento de garrafas e frutas em quantidade.



[Porchetta: prato típico italiano feito com um leitão inteiro,
esvaziado, desossado e recheado com a sua carne temperada]



[Tordo]

– Isso bastará? não bastará?

Titta dizia que sim; Mauro que não; e fazia a conta:

– Nós, oito e, com o convidado, nove; o criado e a criada, onze. Pela graça de Deus, cada um de nós come por quatro, e... e...

– Não duvide; o convidado não passará fome – assegurava Titta.

Essa conversa aconteceu à meia–noite, em torno da mesa: irmãos e irmãs, todos os sete, tinham saído aos poucos da cama, levados pelo mesmo desejo de ver que efeito fazia a comida posta; e assim se reuniram um a um em camisola, com uma vela na mão, como sombras noturnas. Entre Titta e Mauro pouco depois esquentou a discussão. Mauro brandia uma lebre e ameaçou o irmão. Saíram na mão.

Mazurca! Mazurca! – exclamou então Angelica, ouvindo por acaso o bandolim e o violão de uma serenata em algum lugar na rua.

[Mazurca: uma dança da época.]

– A Notturna! – exclamou Santa, na hora, batendo as mãos e puxando a irmã para dançar, todas as duas de camisola.

[Notturna: Provavelmente a Piccola serenata notturna in sol maggiore K 525 de Mozart.]

Os outros então seguiram o exemplo: Lisa se jogou aos braços de Titta. Rosario se juntou a Nicola, e Mauro, ficado só, se pôs também a bailar com a lebre de orelhas esvoaçantes, rindo alegremente.

 

Ninguém, no primeiro momento, entre os apertos de mão, os abraços e os beijos e as perguntas ao irmão Luca (a coluna mais alta da família), reparou em um homenzinho de idade incerta, enfiado em um enorme chapéu que despencava até a sua nuca, apoiado nas suas laterais pelas orelhas dobradas sob a carga. O pobrezinho parecia comovido com as expansões de afeto daqueles oito colossos, que não tinham dado sequer uma única olhadela para ele já naturalmente pouco visível, tão pequeno que nem chegava sequer (mesmo contando com o chapéu) aos ombros de Lisa, a mais baixa das irmãs.

– Oh, parem um pouco: apresento a vocês don Diego Filìnia, conhecido como Schiribillo, – disse por fim Luca, notando a gafe. E colocou uma mão no ombro dele, com ar de proteção, sorrindo.

[Schiribillo: apelido derivado de Schiribilla, pequeno pássaro europeu.]

– Deus, como é pequeno! – exclamaram então, em coro, olhando para ele, as três irmãs. Schiribillo?

– Compleição, minhas senhoras... apelido... – disse don Diego, tirando da cabeça o grande chapéu e sorrindo com uma humildade desajeitada.

Todos o olharam com os olhos cheios de profunda comiseração, assim descoberto, sem um chapéu sobre o crânio brilhante, oval, protuberante; e não acharam uma palavra para dizer–lhe. Oh desilusão! Aquilo ali, o convidado? Se se soubesse antes!

– Por que chora? Perguntou Angelica, depois de tê–lo observado longamente, com o rosto de náusea e de piedade.

– Chora? – disse Luca, virando–se, abaixando–se, e olhando no rosto de perto o minúsculo convidado.

– Não choro, não, – respondeu don Diego, que estava para passar no olho direito um enorme lenço de algodão florido.

– Na vinda, me caiu um cisco neste olho aqui... Não estou chorando.

– Ah... – exclamaram, tranquilizados, os colossos.

Don Diego levou o lenço de seus olhos ao nariz levemente como se fosse receber uma gotinha furtiva.

Tire dos ombros essa capa... – lhe sugeriu Santa.

– Não não... por caridade, deixe–a comigo! – resguardou–se don Diego. Se, Deus me livre, começo a espirrar, sou capaz dar logo cem espirros de uma vez... Mantenho a capa sempre comigo.

E suspirou: – Sim! – e depois: – Sim... sim... – e mais duas vezes, embaraçado com o silêncio sobrevindo, esfregando continuamente uma mãozinha na outra, mantendo os olhos baixos.

Ninguém sabia como começar a falar, e aquela perplexidade se tornava minuto a minuto mais penosa.

– Temos na verdade a obrigação, – começou finalmente a dizer Luca, – de agradecer a don Schiribillo o grande favor e a cortesia que ele teve comigo durante a minha estadia em Comitini.

– Nós lhe agradecemos de todo o coração! – disse então Rosario, estendendo uma mão ao hóspede. – Como se chama? Schiribillo?

– Por favor... não: Filìnia; me chamo Filìnia, – disse don Diego, sorrindo humilde­­men­te.

– Faça de conta que a nossa casa seja a sua, acrescentou Nicola, apertando por sua vez a mão do convidado e olhando para os outros irmãos como que a dizer–lhes: «Agora vocês; eu já disse a minha parte».

Titta e Mauro, um depois do outro, seguiram o exemplo e disseram as suas partes, avançando um passo, militarmente, e apertando a mão de don Diego, o qual não soube escapar do seu: – De nada, de nada – em resposta.

Não foi possível arrancar uma palavra da boca das três irmãs decepcionadas.

Se falou do acontecimento pelo qual Luca se tornou fugitivo.

– Mas que coluninha, o quê! – exclamou indignado. – Homem em carne e osso que era, de tocaia. Se logo depois do tiro ouvi um grito, eu, com estas orelhas... Gostaria de saber sim quem foi o bufão que colocou em circulação essa piada. Eu o faria ver se é lícito rir às costas de Luca Borgianni!

[bufão: palhaço]

– Basta, basta... – disse Rosario. – Seja quem for, disse. Agora não se fala mais nisso. Pensemos hoje em nos divertir.

Don Diego aprovou com a cabeça, não porque previsse uma diversão, pobrezinho, entre aqueles oito gigantes; mas para afastar qualquer possibilidade de discussão. Nunca se sabe.

Atendendo ao chamado para a mesa, Rosario e Nicola começaram a discorrer com o convidado sobre as coisas do campo, as safras ruins e as boas. Don Diego, com a sua humildade própria, constantemente atribuía tudo às mãos de Deus; mas esta ponderação a um certo ponto  fez Nicola ficar fora de si.

– Que mãos de Deus, que nada! Para a terra se quer braços de homem! Estes aqui, olhe, Schiribillo!

E mostrou a Don Diego, estendidos e com os punhos fechados, os braços hercúleos, como a ele fosse habitual dar socos na terra para obrigá–la a render a cada ano mais do que devia.

– E estes aqui, embora velhos e fatigados! – exclamou Rosario, mostrando os seus.

Então até Titta e Mauro quiseram também mostrar os deles, arregaçando as mangas do casaco e da camisa. O pobre don Diego logo viu sobre o seu nariz oito braços musculosos, preparados para matar oito bois.

– Estou vendo... estou vendo... – dizia a cada um, olhando o braço e sorrindo com uma admiração misturada com consternação. – Estou vendo... estou vendo...

- Apalpe! Apalpe! Intimaram-no os irmãos Borgianni.

E don Diego tocou lentamente com um dedo tremendo cada braço, enquanto com a outra mão passava o lenço pelo nariz com medo de que alguma gotinha caísse sobre eles, Deus me livre!

À mesa, veio anunciar Santa.

Schiribillo, à mesa! Gritou Mauro Deixe tudo por nossa conta. Crescerá... comerá tanto, que não será mais possível sair pela porta. Nós o jogaremos empanturrado por uma janela.

– Sou de pouquíssimo apetite, – adiantou don Diego, por precaução.

– Onde será o lugar do convidado? – perguntou sussurrando Titta às irmãs.

– Entre Rosario e Lisa – propôs Mauro. Lisa se rebelou.

– Nós três mulheres ficaremos juntas.

Don Diego ficou entre Rosario e Nicola. Os oito Borgianni, logo que sentaram à mesa, encheram de vinho os grandes copos para água.

– Para fazer o sinal da cruz! – disse Rosario com gravidade.

Bebam!

– O senhor, don Diego, não bebe? – perguntou Titta.

– Obrigado, antes da refeição, nunca, – Se desculpou o hóspede timidamente.

– Ora vamos, para abrir o apetite, – sugeriu Nicola, dando–lhe um copo na mão.

Então don Diego levou–o aos lábios, por cortesia, e apenas apenas o encostou para um golezinho cauteloso.

– Vai! Vai até o fundo! – incitavam–no os oito Borgianni.

– Não posso... obrigado, não posso...

Mauro se levantou da cadeira:

– Vou mostrá-lo como se faz, espere!

Segurou com uma mão o copo, com a outra a cabeça de don Diego e, dizendo: – Deixe–me servi–lo! – o esvaziou na boca do pobrezinho, que relutava em vão.

– Oh Deus! – soluçou, ficando em pé, don Diego, meio afogado, com os olhos cheio de lágrimas. – Oh Deus!

E enxugou o suor do rosto, no meio do riso de todos na mesa.

– Olhem, oh! saiu pelos seus olhos! Observou Angelica, zombeteiramente.

Veio à mesa a porchetta recheada. Rosario ficou de pé; trinchou as fatias: a mais grossa para don Diego.

– Muita coisa... muito... muito... – disse ele com o prato na mão.

– Que muito! – Exclamou Nicola. – Não comece!

– A metade, por favor... – insistiu don Diego. – Não é possível para mim... Eu sou magro...

– Magro? Isto é carne de porco! Coma! – gritou Mauro, levantando–se outra vez da cadeira.

Don Diego, espantado, inclinou a cabeça sobre o prato e se pôs a comer calado calado.

Comeram aquele primo em silêncio, todos. Só, de vez em quando, apenas o convidado é que fazia menção de descansar furtivamente o garfo.

[primo: primeiro prato de uma refeição italiana, comumente uma massa]

– Coma! – Repetiam–lhe os colossos. – Até o último pedaço.

– E agora não é possível eu engolir mais nada! – Protestou don Diego, com alguma energia, depois de ter terminado o primeiro prato, dando um grande suspiro de alívio. – Fiz, como se diz, como Carlos Magno em França.

[como Carlos Magno em França. No original "Ho fatto, come suol dirsi, quanto Carlo in Francia".
Modo de dizer "exagerei" (pois "fiz tanto quanto Carlos Magno", que se arriscou muitas vezes)]

– O que o senhor disse? – replicou Mauro. – Até agora estamos apenas começando...

– Eh, vocês, tudo bem... – observou, sorrindo, don Diego – vocês têm a capacidade, que Deus os abençoe... Eu digo por mim...

– E por quem você nos toma? – indagou Titta, franzindo a testa. – Você crê que nós o convidamos à mesa para um prato só e acabou? Trate de comer, faça a sua obrigação. A nossa obrigação é agradecer–lhe.

– Mas não é ofensa, – apressou–se a desculpar–se don Diego. – Estou dizendo que eu...

– Vai comer! – cortou logo Rosario. – Aqui está a caça de Mauro.

– Uma lebre e cinco tordos? – exclamou aterrorizado don Diego. – Você está enganado, meu senhor! Tenha paciência: como pode imaginar que eu...

– Sem historinha! sem historinha! – disse Nicola, impaciente.

– Mas me olhem um pouco, – respondeu don Diego. – É possível? Onde coloco essa comida? Vocês não vão querer que eu deixe aqui a pele...

– Qual pele? – perguntou Rosario. – O senhor não tem que deixar nada. A lebre foi esfolada.

– Falo da minha, falo da minha! Onde meto uma lebre?

– Te dei também cinco tordos …

– Mais essa! Comerei apenas eles.

– Eta! Irrompeu Mauro, brandindo uma anca da lebre segurada com seus dentes. – Esta caça eu que cacei. Arrebentei minhas pernas por você, três dias seguidos. Se não comer tudo, será uma ofensa dirigida a mim pessoalmente.

– Não se altere... não se altere, por caridade! Vou tentar...

E, entre ele e si mesmo, o pobre don Diego encomendou a alma a Deus misericordioso.

Comendo, o suor começou a escorrer–lhe pela fronte. Erguia um pouco os olhos: via aqueles oito demônios fugidos do inferno não pararem mais de colocar vinho, vinho vinho.

– Cristo, ajude–me! – reclamava baixinho, consigo mesmo.

O jantar não terminava mais. Don Diego queria chorar, rolar por terra, de desespero, arranhar o rosto, desconjuntar a boca, de raiva. Que crueldade era aquela? Neros! Neros! Mas não tinha mais força nem mesmo para afastar o prato: talheres, copos, garrafas rodopiavam diante seus olhos sobre a mesa, as orelhas explodiam, as pálpebras se fechavam sozinhas; enquanto os oito Borgianni, já embriagados, uivavam, agiam como possuídos, ora se levantando, ora se sentando e se insultando uns aos outros.

[Nero: cruel imperador da antiga Roma]

Então, se don Diego empurrava um pouco o prato, dizendo como para si mesmo: – Não quero mais... não quero mais... – os oito gigantes levantavam–se, com facas da mesa em punho, e os dois mais próximos, ameaçando sua garganta, gritavam:

– Coma, don Pateta! Para você é que foi feita toda esta despesa!

Don Diego não estava mais neste mundo, quando entre as pálpebras semi-cerradas vislumbrou o que lhe pareceu uma grande roda de pedra para amolar faca sobre a mesa. Fez então uma vã tentativa de se levantar, de fugir.

– Oh Deus, me amarraram na cadeira! – gemeu, e se pôs a chorar.

Não era verdade: a ele parecia assim, pobre don Diego! Rosario se levantou, tão alto como era, com a faca de trinchar na mão. Don Diego achou que a cabeça de Rosario tocava o teto e que tinha na mão um machado para justiçá–lo.

– Metade para don Diego! – gritou Rosario, cortando ao meio a enorme torta, que ao pobrezinho parecera uma roda de amolador.

– A outra metade é para os vizinhos! - propôs Angelica.

– E nós? – perguntou Mauro. – Nós nada? Eu quero a minha parte! Luca se põe a favor da proposta de Angelica.

– Para os vizinhos! Para os vizinhos!

Don Diego estava fixado naquela disputa, estarrecido.

– E então eu, à força, pego a minha parte! – prorrompeu Mauro, erguendo–se e estendendo a mão para a torta.

Mas Luca foi mais rápido: pegou a torta e, seguido pela família, entre gritos, puxões e empurrões, jogou-a por uma janela. Seguiu–se uma rixa furiosa, irmãos e irmãs se engalfinharam: guinchos, socos, bofetões, arranhões, cadeiras derrubadas, garrafas, copos, pratos estilhaçados, o vinho esparramado sobre a toalha; um pandemônio! Rosario ficou de pé numa cadeira; gritou com sua voz poderosa:

– Vergonha! Que espetáculo! Temos um convidado à mesa!

Ao apelo pelo orgulho aqueles furibundos pararam de repente, como por encanto. Procuraram o convidado: onde estava? Onde se escondera?

Sobre a cadeira a capa, sob a mesa um par de sapatos. O desgraçado escapara com os pés descalços para correr mais rápido.

– No fim das contas, tudo andou bem... – diziam uns para os outros pouco depois os oito Borgianni, recompostos. – Tudo bem, exceto as frutas que nem foram servidas.


Esta é a minha tradução para o conto Un invito a tavola
escrito por Luigi Pirandello e publicado em 1902.

Traduzi do modo mais literal que consegui: usando palavras as mais próximas do texto original, mantendo a pontuação e sintaxe do Pirandello e não reinterpretando o significado com palavras mais atuais ou usuais. Evidentemente isso não foi sempre possível. Todavia, o tratamento pessoal – uso de tu, vós, o senhor, você – eu não respeitei. 

Acho que o resultado ficou bastante curtível, prazeroso.

Para quem não está acostumado com o Pirandello, recomendo que não procurem nele qualquer julgamento de seus personagens – personagem bom x mau, superior x inferior. Seu humor é como uma caricatura – um retrato reconhecível, mas com traços exagerados. Pirandello nasceu e viveu na região da história contada; seus personagens e situações são retratos/caricatura que ele viu de bem perto com um olhar etnográfico.

O original em italiano está em outra página aqui no blog: "Un invito a tavola"

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