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sábado, 10 de fevereiro de 2024

A canção de McCartney sobre sua saída dos Beatles

A canção de McCartney sobre sua saída dos Beatles

Conto no texto abaixo
a história que está por trás da
minha versão da música
Man we was lonely
de Paul McCartney.

Publiquei no meu canal do youtube um vídeo Nóis tava sozim com essa música em português.

Aqui eu conto a história dessa canção e falo sobre a feitura do nosso vídeo interpretando-a.

Se você ainda não viu o tal vídeo, assiste lá, são só 3 minutos.
Aproveite e dê um like, deixe um comentário para eu saber quem foi que viu, se inscreva no canal, compartilhe no facebook etc etc.


Paul: "Man, we was lonely!"

Solidão. É o que expressa a canção "Man We Was Lonely", do primeiro disco solo de Paul McCartney após a separação dos Beatles.

Superação também. A canção fala sobre como a vida familiar e amorosa tirou-o da fossa e ele pode voltar a produzir.

Aqui conto um pouco do que sei sobre essa história e como nós fizemos um videozinho cantando essa música em português.


Para quem ainda não assistiu o nosso vídeo
Aproveite e deixe um comentário lá no youtube, um like, etc.

O contexto

O long-play McCartney foi gravado em 1970. Paul tocou todos os instrumentos e cantou sozinho, em sua própria casa.


capa do LP (álbum) McCartney de 1970

Em setembro do ano anterior, 1969, John saíra dos Beatles, embora não publicamente. Paul passou em seguida por um momento de depressão e insegurança por ter perdido o único "emprego" que ele tivera na vida. Embora ainda em segredo, a banda Beatles estava na prática desfeita. Mais tarde, em 2001 ele disse para sua filha Mary que "quase ficou louco" pela dor de perder a banda e os amigos.

Após um período meio entregue ao álcool, Paul, através da vida familiar e da volta ao trabalho de compor e interpretar, sentiu ter superado esse momento.

Essa dor e a sua superação é que inspirou "Man we was lonely".


Gravação original

Paul evitou que essa canção fosse melancólica. Ela é harmonicamente bem simples, em tom maior no seu refrão repetitivo, e nele frisa a solidão sentida, "mas que agora está tudo bem". Tão simples, que ele afirmou que tinha o ar caipira que ele queria.

Em outro comentário sobre a música, ele sugere que a inspiração base veio com a frase "we was hard pressed to find a smile" que, embora a achasse piegas, ele gostou por descrever bem os sentimentos que sentira. Algo como "nós éramos forçados a achar um sorriso" (para dar ou para receber? Provavelmente as duas possibilidades).

Nós quem?

Aqui noto o uso ambíguo de "we" / "nós" que tanto pode representar "eu", como "os Beatles" ou mesmo "ele e a família juntos".

A construção "we was" propositadamente errônea ("nós estava"), que ele emprega no título e nesse verso chave ("we was hard pressed..."), ajuda essa ambiguidade e proporciona o tal "ar caipira" que justificaria a música ser simplória, como  fosse uma brincadeira. O objetivo dele foi, com esse truque, criar um distanciamento entre o resultado da canção e o sentimento de dor inspirador inicial. Note que isto é oposto ao que John Lennon veio a produzir nos seus doridos e confessionais primeiros trabalhos solos.

A separação

Após a morte do empresário deles, Brian Epstein, em 1967, os negócios da banda ficaram sem rumo. Ficando claro, inclusive, alguns insucessos financeiros, Paul sugeriu que o pai de Linda, sua esposa, assumisse o papel empresarial. Uma desconfiança entre eles surgiu, provavelmente por conta do estilo bossy (de chefe) que frequentemente Paul assumia, certamente por ser o mais dedicado.

Lennon consultou Mick Jagger sobre um ex-empresário dos Stones, Allen Klein. Jagger admirava a eficácia dele em negócios, mas não a sua honestidade, tendo os Stones acabando por ter que demitir Klein.

Lennon acabou convencendo George e Ringo a contratarem Klein, porque se não o fizessem estariam falidos em menos de 6 meses. Paul entrou em desacordo.

Paul, na época da canção, explicou que por questões técnicas não podia processar Klein, que legalmente não participava dos acordos da banda, tendo, por final, que processar os Beatles, ou seja, seus melhores amigos, para poder romper os acordos. E este seria o motivo de ter ficado tão devastado.

A feitura da canção

No dia do álbum ser fechado, Paul compôs o refrão e a introdução/conclusão de "Man we was lonely", ainda na cama ao acordar. Musicalmente mais uma de suas canções de music-hall, como seus críticos logo mais declarariam. E talvez a pior delas, disseram.

É claro que as expectativas dos críticos eram muito altas. George e John, nos seus lançamentos solos dessa época, excediam em qualidade. Mas... 

  • a suave introdução instrumental - que ele repetia na conclusão dessa música - era extremamente agradável e colava nos ouvidos.
  • Em seguida o refrão, que se repetia 3 vezes na gravação, era divertido, para cima e também colava. Mesmo estando no baixo nível de qualidade de "All together now".

No horário de almoço, Paul compôs a bridge, ponte de ligação entre esses refrãos, com muita pressa.

  • Na bridge a música modula para o tom menor e desliza suavemente cantando o lamento de ele ser agora um músico solitário, para terminar declarando as vantagens do home-office, que permite tempo para viver com a família, e, preparando na harmonia, a entrada para a volta do tom maior da repetição do refrão.

Sendo o refrão cantado 3 vezes, a bridge entre eles ocorre 2 vezes, contribuindo mais com sua beleza ao restante da música. Mas Paul, quando repete a bridge, omite exatamente a letra melodiosa.

  • No lugar toca um suave solo de guitarra. Mas ele tinha que ser diferente. O solo é tocado em slide em uma guitarra Telecaster normal e, em vez de bottleneck para fazer o slide nas cordas, ele usa uma baqueta de bateria.

Parte do press-release do álbum em que Paul comenta sobre essa canção
https://www.the-paulmccartney-project.com/_images/wp-uploads/2022/03/image-249-736x1024.jpg

A nossa versão

Em 1970 mesmo, comprei o disco (LP). Não foi uma boa surpresa. Achei descartáveis algumas faixas. Outras, adorei. Essas foram Maybe I'm amazed, Junk e Every night. Com o tempo passei a gostar das que pareciam apenas bobinhas, dentre elas Man we was lonely.

Ano passado, 2023, passeando pelo youtube, fui parar em uma gravação diferente em que a introdução (e conclusão) tinha um coro vocal por cima da melodia instrumental do Paul. Daí surgiu-me a ideia de fazer um coro de 4 vozes semelhante. Essa ideia me animou a gravar a canção. As quatro vozes acabaram ficando com duas pessoas (Lúcia e Adriana), duas vozes cada. Foi um período difícil de engajar mais pessoal.

Para dar uma contribuição maior, decidi fazer uma versão em português. Isso sempre me dá um grande prazer (assista aqui). E um grande trabalho adicional, pois tento caprichar na métrica, nas tônicas, rimas e sonoridade originais. Capricho raro em versões de canções.

A primeira questão é como deveria traduzir a própria expressão "we was" do título e usada várias vezes no refrão. Normalmente o Paul deveria usar "we were" ("nós estávamos") ou "I was" ("Eu estava"). Misturando as opções, ele conseguiu o que queria.

Lembrei do "ar caipira" mencionado pelo próprio Paul e tasquei um "Nóis tava sozim" bem roceiro que respeitava a métrica e as tônicas de "Man we was lonely"; o mesmo para "And we was hard pressed to find a smile", traduzindo para "E nóis tentava um sorriso achar" (com ajuda da Adriana).

Para deixar claro que a ortografia usada foi proposital, decidi que o arranjo do refrão seria caipira. Até o r de achar seria pronunciado molhado para distanciar do meu r carioca. Nada novo: os Mutantes já tinham feito isso na música 2001.


Mutantes sendo caipiras

Aí surgiu um grande problema: ninguém queria cantar caricatamente comigo esse refrão; e música caipira tinha que ter duas vozes, né?

Sobrou para mim fazer as duas vozes.

Para o arranjo do acompanhamento, quis me afastar dos Mutantes e me inspirei no Calix Bento do Milton Nascimento, onde usam viola, acordeão e percussão marcando um ritmo que se ajustava ao que eu queria. Lógico que eu não tinha os meios, né? Então fiz o som da viola com o meu violão de aço mesmo, além de batidas na costa do violão.


Calix Bento com Milton Nascimento

Em seguida vem a tal bridge, que eu desejava suave e bem cantada. Aí não podia ser eu... Apelei para o Bernardo que topou e fez bonito.

Com isso, o clima já era outro e a volta do refrão eu quis que fosse suave. A Adriana cantou assim.

A ideia é que, após a suavidade, a música tivesse uma agitação crescente sem que o andamento fosse alterado. Por isso, nesse refrão que chamei de suave, coloquei uma guitarra e um baixo tocando algo mais agitado como Lady Madona.

Na volta da bridge, toquei o solinho do Paul, mas sem slide. Achei gostoso de se ouvir. Não sei. Mas é muito gostoso de tocar. Compus o acompanhamento do piano dedilhando o violão e foi um sufoco ENORME aprender a tocá-lo no piano.

Na terceira rodada do refrão, pirei. Virou um charleston, com direito a washboard (que eu amo).

A conclusão é uma repetição invertida da introdução. A conclusão começa com ênfase na guitarra e termina com as vozes predominando; na introdução era o contrário.

O vídeo

A feitura do vídeo foi uma aventura muito maior ainda. Não cabe aqui. Aprendi muita coisa. Pena que eu esqueço rápido o que aprendi...

Contei aqui
a história que está por trás da
minha versão da música
Man we was lonely
de Paul McCartney.

Publiquei no meu canal do youtube um vídeo Nóis tava sozim com essa música em português.

Se você ainda não viu, assiste lá, são só 3 minutos.
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sábado, 24 de setembro de 2022

Por trás de um bom dia!

Conto aqui
a história que está por trás da
minha versão da música
Good Morning Good Morning
dos Beatles.

Publiquei no meu canal do youtube um vídeo Bom dia, bom dia! com essa música em português.

O resultado ficou bem legal. Muitas pessoas curtiram.

Deu muito trabalho fazer. Muitos perrengues. Aqui eu conto os desafios mais interessantes e curiosos.

Se você ainda não viu, assiste lá, são só 3 minutos.

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Bom dia! Bom dia!


Good Morning Good Morning
The Beatles

A canção Good morning Good morning do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band dos Beatles não é muito conhecida, nem admirada. No contexto desse disco ela faz sentido, com seu ar de banda de circo, cheia de experimentalismo e um toque de psicodelia. A ideia do arranjo dos Beatles era emular uma banda de sopro, como se fosse a Lonely Hearts Club Band tocando e não eles. É uma música datada, feita para preencher um disco, quase esquecida. Mas que tem uma deliciosa marca beatle.

Não me parece que algum artista famoso a tenha regravado. Pesquisando, só vi covers de outros menos famosos e sempre tentando seguir ao máximo o arranjo original. Até que eu ouvi Micky Dolenz cantar essa música.

[Micky Dolenz: único sobrevivente, hoje, dos Monkees.]

[The Monkees: grupo musical com programa de televisão dos anos 60; sou fãzoco deles.]


Good Morning Good Morning
Mick Dolenz com Christian Nesmith

[Christian Nesmith: filho do Mike Nesmith (outro monkee – o do gorrinho).]

Depois de assistir o vídeo acima, ouvi novamente o Mick na sua gravação original em álbum. Nas duas versões, a doçura da voz do Mick, dos arranjos e dos vocais me ganharam.


Good Morning Good Morning
Mick Dolenz

Aí eu quis tentar fazer algo parecido. Algo suave, doce, para realçar o lado poético da canção.

Malabarismos musicais

O primeiro passo foi aprender a tocar a música no violão. Eu já tinha as cifras, o que é até fácil de achar na internet. Escolhi tocar junto com a gravação dos Beatles porque eu a conhecia bem. Só que não foi tão simples acompanhá-los no violão – a música é cheia de quebras de compasso e me exigia malabarismos.

Dava para copiar o acompanhamento de guitarra que o John toca na gravação (ouça aqui). Esse acompanhamento funcionou bem na gravação deles para chegar ao propósito do álbum, mas em si não é bonito. Não era o que eu queria.

As duas gravações do Mick Dolenz eram muito distintas da dos Beatles: usavam muitos violões. Eu não queria fazer exatamente igual ao que eles fizeram. Queria copiar apenas a sensação de suavidade que elas tinham.

Como a gravação dos Beatles estava cravada na minha memória, afinal eu a escutava há quase 55 anos, desde 1967, parti para aprender a tocar como a minha memória afetiva lembrava da música, sem ficar escutando a gravação original dos Beatles.

Uau!! não foi lá muito fácil, não. Mesmo sendo só uns 4 acordes, dos mais simples (A, Em, G, D). Preencher o ritmo e fazer as quebras exigiram uns dias de experimentação e treino. Claro que um músico de verdade teria mais facilidade do que eu. Mas o que se vê na internet são os guitarristas tocarem de modo semelhante ao que o John toca na gravação. E, como eu disse, não era o que eu queria.

Tocar intuitivamente como eu sentia a canção na minha memória foi o método certo para o que eu queria. Para John, que aprendeu a tocar, cantar e compor intuitivamente, com praticamente zero conhecimento formal, nada havia de esdrúxulo nessa canção. Ele compunha e tocava como sentia. Eu então tive que aprender a tocar a canção como eu a sentia.

Não basta contar compasso

Basta contar consigo
Que a chama não tem pavio

Para muitos músicos formais, essa música é disparada a mais complexa composição dos Beatles.

George Martin, o maestro produtor musical dos Beatles, reconhecido como o quinto beatle, escreveu um livro, Sgt. Pepper, onde conta como foi a criação do mais famoso álbum deles: Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band. O capítulo 8 é dedicado à música Good Morning Good Morning.

George Martin conta como foi difícil para os músicos de estúdio, como os do conjunto de sopros que participou da gravação, entenderem o que tinham que fazer na gravação e quando fazer. Os Beatles não entendiam a dificuldade. Para os músicos era necessária uma partitura. E não havia uma. Posteriormente, a editora Northern Songs, somente a partir da audição do disco já gravado, fez a primeira.

Só para se ter uma ideia, nesta partitura, o primeiro verso da primeira estrofe compõe-se de dois compassos 5/4, o que já é inusitado, somando 10 "tempos" (10/4). Já no segundo verso, o segundo compasso é estendido para 2 compassos: um 3/4 e um 4/4, somando 12 tempos. Adiante a música complica mais ainda. A confusão é tanta que pode-se encontrar partituras com diversas transcrições diferentes.

Há quem proponha ser mais simples se ter uma partitura para a melodia cantada, outra para a harmonia do acompanhamento e uma super simples para a bateria, que, incrivelmente, mais parece um metrônomo que marca os ticks (semínimas, batidas, "tempos") sem marcar (definir) claramente os compassos (assista aqui). Isso funcionaria porque cada uma dessas coisas na música tem um ritmo próprio distinto das outras e esses ritmos se encaixam simultaneamente.

Começando a gravar

O passo seguinte era casar o meu jeito de tocar com o arranjo dos Beatles. Assim de cara não dava certo, mas mexendo aqui, mudando ali, deu-se um jeito. Gostei.

A harmonia ficou ligeiramente diferente; isso foi maneiro pra mim. Basicamente, no lugar das pausas que a guitarra do John dava, eu preenchia com algumas notas ou acordes diferentes da gravação original. Não era muita coisa, mas eu me sentia melhor assim.

Parti para gravar esse violão no Pro Tools First, o software de edição de áudio gratuito que uso.

Primeiro eu criei uma trilha com a gravação original dos Beatles. Gravar o meu violão seria como se eu tivesse adicionado um violão à gravação deles.

Como eu pretendia que outras pessoas participassem remotamente, o que acabou não acontecendo a não ser pela bateria da Carolina, e também para facilitar edições, essa gravação tinha que ficar em um tempo certinho. Contando as batidas em um intervalo de tempo, chutei que a gravação era próxima de 120 bpm (batidas por minuto).

Defini que iria trabalhar com esse tempo e ajustei a gravação dos Beatles para ficar exatamente nesse tempo. Não foi difícil fazer isso no Pro Tools, que tem ferramentas apropriadas para esticar/espremer o som e porque a bateria do Ringo marca exatamente cada "batida" da música. Depois de pronto vi na internet alguém dizer que no disco eram 121 bpm. Meu chute, 120 bpm, havia sido bom.


John Lennon
ilustração de Claudio Duarte

Aí estava pronto para gravar em outra trilha o meu violão acompanhando. Era só para ter uma base para começar. Mas foram dezenas de tentativas, dezenas de edições e algumas descobertas de nuances da gravação original.

Agora vou cantar! Não será a gravação final. Vou arranjar um cantor depois. Droga! o tom é baixo para a minha voz; e na outra parte, a ponte, o tom é alto demais para eu conseguir cantar suave.

Se fosse só esse o problema...

Destrava-língua

A música tem duas vezes uma bridge (ponte) – uma estrofe entre as estrofes padrões da música (os verses). Cada ponte com uma letra distinta. O problema é que as letras dessas bridges são cantadas tão rapidamente que eu não conseguia cantar de uma maneira que desse para entender. Além de que, pela rapidez, eu sempre errava a pronúncia de alguma palavra, para mim era um verdadeiro trava-língua.

Havia duas soluções para isso:

  1. Uma, fazer uma versão em português para a música, o que eu adoro fazer (assista aqui) e estou tentando me aperfeiçoar; é mais fácil pronunciar na língua materna;
  2. outra solução era fazer o que o Mick Dolenz fez: prolongar o tempo da ponte sem mudar o ritmo da música. Ele deve ter pensado "quero cantar isso, mas esses caras são loucos!". Isso permitia tornar a interpretação mais doce, sem de fato tornar mais lenta a sensação da música.

Decidi adotar as duas soluções.

Entendendo a letra

Para começar a letra em português, o primeiro passo era entender a letra em inglês. E esta era meio doida!

"I've got nothing to say"

Lennon empregou o seu estilo "poema abstrato de frases sem aparente conexão mas que causam a sensação de algo". Era a época de Lucy in the sky, na qual cavalos comiam tortas de marshmallow; de Across the Universe, em que palavras fluíam como chuva em um copo de papel; e de I am the Walrus, sentando em um floco de milho.

"Half of what I'm saying is meaningless"

George Martin explica no seu livro que John costumava compor ao piano em casa com a televisão ligada com volume baixinho. Quando estava sem inspiração, ele se distraía olhando para a tela.

Num desses momentos, apareceu um anúncio dos sucrilhos Kellogg's – que dizia "Good morning! Good morning! the best to you each morning". Essa foi a inspiração para ele começar a canção: se os flocos de milho são a maneira correta de começar um "bom dia", como seria o resto do dia desse comedor de sucrilhos?


anúncio que John assistiu

Martin comenta que nessa época John morava em Weybridge, subúrbio chiquésimo afastado do centro de Londres, em uma mansão de 27 cômodos com sua mulher Cynthia e o filho Julian. Na letra da música, John procura transmitir a sensação de morar em um lugar assim, onde nada acontece. Seria um dia iniciado com sucrilhos e com mais nada de interessante depois.

Paul morava no centro de Londres e tinha uma vida boêmia e cult. Quando John não aguentava a sua vida modorrenta, fugia à noite para a casa de Paul e para a badalação. Em breve John conheceria Yoko que o libertaria daquela monotonia.

A letra contrasta a manhã-tarde no subúrbio com o agito da noite na cidade. Essa é uma interpretação específica do sentido da letra. A tradução literal não é tão sugestiva assim.

"I am he as you are he as you are me and we are all together"

Uma característica da letra de Good Morning Good Morning é a falta de coesão. Sequer dá para saber sobre quem se fala: é sobre o próprio narrador? sobre algum personagem? sobre quem está escutando a música? é indefinido? Os pronomes embaralham tudo: his life; your boy; I've got nothing to say; glad that I'm here.

Fazendo a versão

Lennon não gostava que tentassem decifrar "sentidos ocultos" nas músicas dos Beatles. Não eram ocultos; eram inexistentes.

Percebi que eu não ficaria satisfeito em gerar uma letra assim e procurei meio que dar algum sentido próximo ao que moveu Lennon inicialmente. Até porque o pique do subúrbio carioca é oposto ao do subúrbio londrino onde ele morava e que o inspirou. Que tal falar sobre um cara entediado e que ao chegar a noite se diverte, já que todos saíram do trabalho e da escola? Não deixa de ser uma interpretação válida da letra original.

O cara vagueia pelo bairro em que nada acontece, até na velha escola. Porém quando o sinal de saída toca, as ruas se enchem e, chegando a noite, pessoas vão se divertir.

Procurei manter o estilo de frases soltas geradoras do clima a ser passado. Mas sem pronomes embaralhados.

Respeitando métricas, tônicas e rimas

Só que as dificuldades maiores ainda viriam. A letra, como a língua inglesa permite, é majoritariamente feita com palavras monossílabas. Cada verso tem 4 ou 5 sílabas, cada uma podendo ser uma palavra que em português tem no mínimo duas sílabas. E esses versos são oxítonos – a tônica é na última sílaba. No português a maioria das palavras são paroxítonas. Não serviam para terminar esses versos de apenas 4 ou 5 sílabas. Tremenda limitação.

Por exemplo: nothing to do – 4 sílabas em 3 palavras, tônica na última sílaba (do). Tradução: nada a fazer – 5 sílabas. Mas esse verso é fácil de resolver, basta cantar nad'a fazer. Esse truque eu já tinha aprendido em outras versões que fiz, abusar das contrações (liaisons). Outro lance útil foi usar verbos no infinitivo (fazer, valer) ou em algum tempo em que eles são oxítonos (mudou, parou).

A maioria dos versionistas desrespeitam essas questões, o que faz com que os cantores tenham que modificar a melodia, cantando com métrica e tônicas diferentes das notas compostas pelo autor da música. Tom Jobim reclamava muito de seus tradutores para o inglês por esse motivo.


Tom reclamava das versões mal feitas.

Então ficou assim: Nad'a fazer | pr'hoje valer | s'ela não vem.

Além de uma enorme pescaria de monossílabos tônicos: vem, bem, sei, lar, mal, sal, etc. para fazer os versos soarem oxítonos.

Isso era só o começo. Muitas aventuras para produzir o vídeo e o som ainda viriam. Não vai dar pra contar.

 

Apenas mais essa...

Logo após ter o som quase pronto (nunca ficou - hehe 😁), quando fui procurar imagens sem copyright ligadas a manhã para começar a produzir o vídeo, a primeira que apareceu foi um vídeo de sucrilhos com leite.

Meu anjo da guarda é maneiro, não é? 😜

Contei aqui
a história que está por trás da
minha versão da música
Good Morning Good Morning
dos Beatles.

Publiquei no meu canal do youtube um vídeo Bom dia, bom dia! com essa música em português.

Se você ainda não viu, assiste lá, são só 3 minutos.
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Letra original
Significado literal
Minha versão

[Verse 1]
Nothing to do
to save his life,
call his wife in

Nada a fazer para salvar a vida dele, contate a mulher dele
Nada a fazer
pra hoje valer
se ela não vem

Nothing to say
but what a day,
how's your boy been?

Nada a dizer. "Mas que dia!" "Como vai seu menino?"
Nada a dizer,
nem que fazer:
todos vão bem

Nothing to do,
it's up to you

Nada a fazer, cabe a você
Nada a fazer
É só você

I've got nothing to say
but it's okay

Eu não tenho nada a dizer, mas está ok.
E mais nada eu sei
Mas tá ok

[Verse 2]
Going to work,
don't want to go,
feeling low down

Ao ir para o trabalho, não quer ir se sentindo para baixo
Ir trabalhar
Xi! nem pensar!
Sente bem mal

Heading for home,
you start to roam,
then you're in town

Indo para casa, você começa a perambular. Agora você está na Cidade
Na volta ao lar
fica a vagar.
Povo sem sal

[Bridge 1]
Everybody knows
there's nothing doing

Todo mundo sabe que nada está rolando
Nada acontece e
todos sabem

Everything is closed,
it's like a ruin

Tudo está fechado, é como uma ruína
Tudo está fechado e
nada abre

Everyone you see
is half asleep

Todos que você vê estão meio dormindo
Como se estives-
sem a dormir

And you're on your own,
you're in the street

E você está por sua própria conta, você está na rua
Sem que mais ninguém
fosse sair

[Verse 3]
After a while
you start to smile,
now you feel cool

depois de um tempinho você começa a sorrir, agora você se sente maneiro
Um passo a mais,
sorri feliz,
tudo tá azul

Then you decide
to take a walk
by the old school

Então você decide dar um passeio pela escola velha
A velha escola
pôde olhar
no portão sul

Nothing has changed,
it's still the same

Nada tem mudado, ainda é tudo o mesmo
Nada mudou,
Tudo parou

I've got nothing to say
but it's okay

E mais nada eu sei
Mas tá ok

[Bridge 2]
People running round,
it's five o'clock

Pessoas correndo, são cinco horas
Povo a correr,
tocou o sinal

Everywhere in town
it's getting dark

Em todos os lugares da cidade está escurecendo
E na noite na-
da mais é igual

Everyone you see
is full of life

Todos que você vê estão cheio de vida
Pensam no pão,
lanche e café

It's time for tea
and Meet the Wife

É hora do chá e do Meet the Wife (programa de tv - Econtro com a Esposa)
Que logo vão
ver a mulher

[Verse 4]
Somebody needs
to know the time,
glad that I'm here

Alguém precisa saber as horas, feliz que estou aqui
Alguém pergunta
que horas são,
doce e tão bem

Watching the skirts,
you start to flirt,
now you're in gear

Olhando as saias, você começa a paquerar. Agora você vai em frente.
Pisca e sorri,
"Pra onde quer ir?"
Ela então vem

Go to a show,
you hope she goes

Vá para um show, você espera que ela vá
Vão para um show.
"Foi bom? Gostou?"

I've got nothing to say,
but it's okay

E mais nada eu sei
Mas tá ok

sexta-feira, 25 de março de 2022

Um convidado à mesa



Esta é a minha tradução para o conto Un invito a tavola
escrito por Luigi Pirandello e publicado em 1902.

Traduzi do modo mais literal que consegui: usando palavras as mais próximas do texto original, mantendo a pontuação e sintaxe do Pirandello e não reinterpretando o significado com palavras mais atuais ou usuais. Evidentemente isso não foi sempre possível. Todavia, o tratamento pessoal – uso de tu, vós, o senhor, você – eu não respeitei.

Acho que o resultado ficou bastante curtível, prazeroso.

Para quem não está acostumado com o Pirandello, recomendo que não procurem nele qualquer julgamento de seus personagens – personagem bom x mau, superior x inferior. Seu humor é como uma caricatura – um retrato reconhecível, mas com traços exagerados. Pirandello nasceu e viveu na região da história contada; seus personagens e situações são retratos/caricatura que ele viu de bem perto com um olhar etnográfico.

O original em italiano está em outra página aqui no blog: "Un invito a tavola"


Um convidado à mesa

– Isso bastará? não bastará? – se perguntavam, olhando–se nos olhos, na cozinha, as três irmãs: Santa, Lisa e Angelica Borgianni, empenhadas há dois dias em preparar uma refeição da gran signori.

[da gran signori: (Como se fosse) para fidalgos, para nobres.]

Santa, a mais nova, era mais alta que Angelica; Angelica, de Lisa, a mais velha. Todas as três, além disso, peitudas e cadeirudas, podendo competir com os irmãos em estatura colossal e em força hercúlea.

– Família Borgianni: oito colunas! – costumava dizer Mauro, o menor dos irmãos e da família inteira.

Três irmãs, portanto, e cinco irmãos: Rosario, Nicola, Titta, Luca e Mauro, em ordem de idade.

Rosario e Nicola dedicavam–se ao campo; Titta cuidava da jazida de enxofre, próxima da aldeia de Aragona; Luca era o empreiteiro para serviços públicos de quase toda a região; Mauro tinha paixão pela caça e era o caçador.

[a jazida de enxofre: A Solfara Mandra. (No texto original Zolfara). Um terreno vulcânico explorado pelos seus minerais, principalmente o enxofre.]

[Aragona: aldeia da província de Agrigento na Sicília, distando cerca de 15 km desta. Na época com cerca de 12.000 habitantes.]

Rosario Borgianni era famoso pelos seus furores juvenis de besta feroz. Contavam dele as mais audaciosas aventuras nos tempos nefastos do brigantaggio, naturalmente acrescidas e embelezadas pela fantasia popular. Até mesmo se dizia que ele tivesse um dia encarado uma dúzia de bandoleiros, dos mais sanguinários, e tivesse matado todos. Exagero! Quatro apenas: dois, ali mesmo, e os outros dois ao longo da estrada que desce de Comitini a Aragona.

[brigantaggio: Banditismo endêmico no sul da Itália por séculos e eventualmente ligado a revoltas populares. Com semelhanças com o cangaço brasileiro.]

[bandoleiros: briganti no texto original.]

[Comitini: aldeia a cerca de 20km ao norte de Agrigento. Na época com cerca de 3.000 habitantes, hoje com menos de 1.000. Aí Pirandello viveu parte de sua juventude e seu pai era proprietário de uma Solfara.]

[Comitini a Aragona: cerca de 3km.]

Também de Mauro se contavam muitas das boas. Um dia, por exemplo, à caça, caiu do alto do Monte delle Forche; rolou três vezes, despencando em três valões selvagens e, a cada vez, se erguendo com o bacamarte alçado em uma mão, exclamava:

– Sorte, que eu sou dançarino!

Não relatavam todavia uma fratura na perna direita e um leve traumatismo cerebral: ele, cujo cérebro na verdade nunca teve um bom funcionamento.

Uma outra vez, na caça, avistou três ou quatro estorninhos sobre o dorso de uns bois pastando em uma colina. Quieto e abaixado, se aproximou e, quieto, curvado, e ao alcance de um tiro, bum! um disparo de espingarda. Salta do seu posto, possuído por todos os demônios, o boiadeiro.



[Um estorninho]

– Alto lá! – gritou–lhe Mauro, em guarda. Se você der mais um passo, viro–te de pernas para o ar!

– Mas como, senhor Mauro! Os meus animais...

– E tu não sabe, imbecil, que onde vejo caça, atiro?

– Mas mesmo em cima do gado?

– Mesmo na cabeça do Menino Jesus, se eu confundir o Espírito Santo com um pombo!

 

O jantar parecia posto para trinta convidados, por baixo. O convidado no entanto era um só, e nem mesmo sabiam quem era. Sabiam somente que chegaria no dia seguinte de Comitini, e que lhe deviam esse jantar a título de agradecimento ao refúgio prestado ao irmão Luca, o empreiteiro, foragido por quinze dias.

Homicídio? Sim... isto é, não; mas quase... Vejam: Luca Borgianni pegou por empreitada a construção da estrada entre Favara e Naro. Uma tarde, após o serviço, voltando a cavalo, em um certo ponto do caminho viu uma sombra se estender ameaçadora sobre o chão de cascalho da estrada iluminado pela lua. Alguém, sem dúvida, estava ali a postos, encapuzado. Luca o vislumbrou, por sorte; ou melhor, vislumbrou o capuz. E achou que o patife estaria acocorado para se proteger da lua que vinha lentamente da colina à esquerda.



[Estrada entre Favara e Naro]

– Quem está aí?

Nenhuma resposta.

Tratá; tratá: engatilhou, por precaução, a espingarda. Um grilo começara a cantar.

Então Luca, de novo, parando o cavalo:

– Quem está aí?

Silêncio. Só o grilo a cantar.

– Vou contar até três! – gritou enfim Luca, empalidecendo. – Se não responder, faça o sinal da cruz. Um!

A sombra não se mexeu.

– Dois!

A sombra, ali, parada, impassível. Apenas o grilo cantando.

– Três!

E um tiro. Alguma coisa saltou pelo ar: e Luca, dá–lhe cavalo! Chegou a casa, sem fôlego. Os irmãos e irmãs acorreram à sua volta.

– Escondam–me! Escondam–me!

– Por que? Ferido?

– Não... morto...

– Você? Quem?

– Um... não sei... com a espingarda... Escondam–me.

Os irmãos tranquilizaram–no e levaram–no, provisoriamente, para a adega na parte de baixo da casa. Enquanto isso, Mauro saiu de casa para apurar se na região já buzinavam alguma coisa a respeito do homicídio. Rosario e Titta aguardavam impacientes que Luca, ali na adega, recobrasse um pouco as forças para retirá–lo para um lugar mais seguro: já tinham pensado no refúgio, na casa de um parceiro deles em Comitini, para onde ele poderia se transferir nessa mesma noite, cavalgando para o portão da aldeia. Nicola, armado até os dentes, partira para rondar pelo lugar designado pelo irmão, para saber quem fora a vítima. Luca enfim pode se meter a caminho. No dia seguinte, ao amanhecer, apareceu Nicola.

– E então?

– Nada! Encontrei somente um casaco com o capuz na terra. É certo que o ferido se arrastou até a aldeia, deixando o casaco ali, esburacado em várias partes... Luca atira como um deus! Ele deve tê–lo ferido mortalmente, a julgar pelo casaco... Eu não entendo: dois buracos grandes assim no capuz, ou seja, na cabeça... e fugiu assim mesmo!

Passaram–se três dias de expectativa angustiante. Não se sabia de nada na aldeia; nem nas aldeias vizinhas se tinha notícia de qualquer ferimento ou caso de morte violenta. Depois de dezesseis dias, enfim, vieram saber que um camponês, trabalhando naquelas cercanias, usou como cabide um marco de pedra da beira da estrada; tinha encasacado a pequena coluna com o capote, e à tarde retornou à aldeia, esquecendo–se dele. Luca tinha atirado contra aquela coluninha, confundindo–a com alguém de tocaia.

Agora a comida estava ali, pronta desde a véspera, sobre a mesa comprida no meio do salão: uma pálida porchetta coberta de louro, recheada de macarrão, em uma assadeira; sete lebres sem pele rodeadas de tordos, mortos por Mauro; dois perus peitudos; cordeiro; tripa e couro fatiado; pés de boi na gelatina; um grande peixe ao molho; uma torta enorme; e depois um regimento de garrafas e frutas em quantidade.



[Porchetta: prato típico italiano feito com um leitão inteiro,
esvaziado, desossado e recheado com a sua carne temperada]



[Tordo]

– Isso bastará? não bastará?

Titta dizia que sim; Mauro que não; e fazia a conta:

– Nós, oito e, com o convidado, nove; o criado e a criada, onze. Pela graça de Deus, cada um de nós come por quatro, e... e...

– Não duvide; o convidado não passará fome – assegurava Titta.

Essa conversa aconteceu à meia–noite, em torno da mesa: irmãos e irmãs, todos os sete, tinham saído aos poucos da cama, levados pelo mesmo desejo de ver que efeito fazia a comida posta; e assim se reuniram um a um em camisola, com uma vela na mão, como sombras noturnas. Entre Titta e Mauro pouco depois esquentou a discussão. Mauro brandia uma lebre e ameaçou o irmão. Saíram na mão.

Mazurca! Mazurca! – exclamou então Angelica, ouvindo por acaso o bandolim e o violão de uma serenata em algum lugar na rua.

[Mazurca: uma dança da época.]

– A Notturna! – exclamou Santa, na hora, batendo as mãos e puxando a irmã para dançar, todas as duas de camisola.

[Notturna: Provavelmente a Piccola serenata notturna in sol maggiore K 525 de Mozart.]

Os outros então seguiram o exemplo: Lisa se jogou aos braços de Titta. Rosario se juntou a Nicola, e Mauro, ficado só, se pôs também a bailar com a lebre de orelhas esvoaçantes, rindo alegremente.

 

Ninguém, no primeiro momento, entre os apertos de mão, os abraços e os beijos e as perguntas ao irmão Luca (a coluna mais alta da família), reparou em um homenzinho de idade incerta, enfiado em um enorme chapéu que despencava até a sua nuca, apoiado nas suas laterais pelas orelhas dobradas sob a carga. O pobrezinho parecia comovido com as expansões de afeto daqueles oito colossos, que não tinham dado sequer uma única olhadela para ele já naturalmente pouco visível, tão pequeno que nem chegava sequer (mesmo contando com o chapéu) aos ombros de Lisa, a mais baixa das irmãs.

– Oh, parem um pouco: apresento a vocês don Diego Filìnia, conhecido como Schiribillo, – disse por fim Luca, notando a gafe. E colocou uma mão no ombro dele, com ar de proteção, sorrindo.

[Schiribillo: apelido derivado de Schiribilla, pequeno pássaro europeu.]

– Deus, como é pequeno! – exclamaram então, em coro, olhando para ele, as três irmãs. Schiribillo?

– Compleição, minhas senhoras... apelido... – disse don Diego, tirando da cabeça o grande chapéu e sorrindo com uma humildade desajeitada.

Todos o olharam com os olhos cheios de profunda comiseração, assim descoberto, sem um chapéu sobre o crânio brilhante, oval, protuberante; e não acharam uma palavra para dizer–lhe. Oh desilusão! Aquilo ali, o convidado? Se se soubesse antes!

– Por que chora? Perguntou Angelica, depois de tê–lo observado longamente, com o rosto de náusea e de piedade.

– Chora? – disse Luca, virando–se, abaixando–se, e olhando no rosto de perto o minúsculo convidado.

– Não choro, não, – respondeu don Diego, que estava para passar no olho direito um enorme lenço de algodão florido.

– Na vinda, me caiu um cisco neste olho aqui... Não estou chorando.

– Ah... – exclamaram, tranquilizados, os colossos.

Don Diego levou o lenço de seus olhos ao nariz levemente como se fosse receber uma gotinha furtiva.

Tire dos ombros essa capa... – lhe sugeriu Santa.

– Não não... por caridade, deixe–a comigo! – resguardou–se don Diego. Se, Deus me livre, começo a espirrar, sou capaz dar logo cem espirros de uma vez... Mantenho a capa sempre comigo.

E suspirou: – Sim! – e depois: – Sim... sim... – e mais duas vezes, embaraçado com o silêncio sobrevindo, esfregando continuamente uma mãozinha na outra, mantendo os olhos baixos.

Ninguém sabia como começar a falar, e aquela perplexidade se tornava minuto a minuto mais penosa.

– Temos na verdade a obrigação, – começou finalmente a dizer Luca, – de agradecer a don Schiribillo o grande favor e a cortesia que ele teve comigo durante a minha estadia em Comitini.

– Nós lhe agradecemos de todo o coração! – disse então Rosario, estendendo uma mão ao hóspede. – Como se chama? Schiribillo?

– Por favor... não: Filìnia; me chamo Filìnia, – disse don Diego, sorrindo humilde­­men­te.

– Faça de conta que a nossa casa seja a sua, acrescentou Nicola, apertando por sua vez a mão do convidado e olhando para os outros irmãos como que a dizer–lhes: «Agora vocês; eu já disse a minha parte».

Titta e Mauro, um depois do outro, seguiram o exemplo e disseram as suas partes, avançando um passo, militarmente, e apertando a mão de don Diego, o qual não soube escapar do seu: – De nada, de nada – em resposta.

Não foi possível arrancar uma palavra da boca das três irmãs decepcionadas.

Se falou do acontecimento pelo qual Luca se tornou fugitivo.

– Mas que coluninha, o quê! – exclamou indignado. – Homem em carne e osso que era, de tocaia. Se logo depois do tiro ouvi um grito, eu, com estas orelhas... Gostaria de saber sim quem foi o bufão que colocou em circulação essa piada. Eu o faria ver se é lícito rir às costas de Luca Borgianni!

[bufão: palhaço]

– Basta, basta... – disse Rosario. – Seja quem for, disse. Agora não se fala mais nisso. Pensemos hoje em nos divertir.

Don Diego aprovou com a cabeça, não porque previsse uma diversão, pobrezinho, entre aqueles oito gigantes; mas para afastar qualquer possibilidade de discussão. Nunca se sabe.

Atendendo ao chamado para a mesa, Rosario e Nicola começaram a discorrer com o convidado sobre as coisas do campo, as safras ruins e as boas. Don Diego, com a sua humildade própria, constantemente atribuía tudo às mãos de Deus; mas esta ponderação a um certo ponto  fez Nicola ficar fora de si.

– Que mãos de Deus, que nada! Para a terra se quer braços de homem! Estes aqui, olhe, Schiribillo!

E mostrou a Don Diego, estendidos e com os punhos fechados, os braços hercúleos, como a ele fosse habitual dar socos na terra para obrigá–la a render a cada ano mais do que devia.

– E estes aqui, embora velhos e fatigados! – exclamou Rosario, mostrando os seus.

Então até Titta e Mauro quiseram também mostrar os deles, arregaçando as mangas do casaco e da camisa. O pobre don Diego logo viu sobre o seu nariz oito braços musculosos, preparados para matar oito bois.

– Estou vendo... estou vendo... – dizia a cada um, olhando o braço e sorrindo com uma admiração misturada com consternação. – Estou vendo... estou vendo...

- Apalpe! Apalpe! Intimaram-no os irmãos Borgianni.

E don Diego tocou lentamente com um dedo tremendo cada braço, enquanto com a outra mão passava o lenço pelo nariz com medo de que alguma gotinha caísse sobre eles, Deus me livre!

À mesa, veio anunciar Santa.

Schiribillo, à mesa! Gritou Mauro Deixe tudo por nossa conta. Crescerá... comerá tanto, que não será mais possível sair pela porta. Nós o jogaremos empanturrado por uma janela.

– Sou de pouquíssimo apetite, – adiantou don Diego, por precaução.

– Onde será o lugar do convidado? – perguntou sussurrando Titta às irmãs.

– Entre Rosario e Lisa – propôs Mauro. Lisa se rebelou.

– Nós três mulheres ficaremos juntas.

Don Diego ficou entre Rosario e Nicola. Os oito Borgianni, logo que sentaram à mesa, encheram de vinho os grandes copos para água.

– Para fazer o sinal da cruz! – disse Rosario com gravidade.

Bebam!

– O senhor, don Diego, não bebe? – perguntou Titta.

– Obrigado, antes da refeição, nunca, – Se desculpou o hóspede timidamente.

– Ora vamos, para abrir o apetite, – sugeriu Nicola, dando–lhe um copo na mão.

Então don Diego levou–o aos lábios, por cortesia, e apenas apenas o encostou para um golezinho cauteloso.

– Vai! Vai até o fundo! – incitavam–no os oito Borgianni.

– Não posso... obrigado, não posso...

Mauro se levantou da cadeira:

– Vou mostrá-lo como se faz, espere!

Segurou com uma mão o copo, com a outra a cabeça de don Diego e, dizendo: – Deixe–me servi–lo! – o esvaziou na boca do pobrezinho, que relutava em vão.

– Oh Deus! – soluçou, ficando em pé, don Diego, meio afogado, com os olhos cheio de lágrimas. – Oh Deus!

E enxugou o suor do rosto, no meio do riso de todos na mesa.

– Olhem, oh! saiu pelos seus olhos! Observou Angelica, zombeteiramente.

Veio à mesa a porchetta recheada. Rosario ficou de pé; trinchou as fatias: a mais grossa para don Diego.

– Muita coisa... muito... muito... – disse ele com o prato na mão.

– Que muito! – Exclamou Nicola. – Não comece!

– A metade, por favor... – insistiu don Diego. – Não é possível para mim... Eu sou magro...

– Magro? Isto é carne de porco! Coma! – gritou Mauro, levantando–se outra vez da cadeira.

Don Diego, espantado, inclinou a cabeça sobre o prato e se pôs a comer calado calado.

Comeram aquele primo em silêncio, todos. Só, de vez em quando, apenas o convidado é que fazia menção de descansar furtivamente o garfo.

[primo: primeiro prato de uma refeição italiana, comumente uma massa]

– Coma! – Repetiam–lhe os colossos. – Até o último pedaço.

– E agora não é possível eu engolir mais nada! – Protestou don Diego, com alguma energia, depois de ter terminado o primeiro prato, dando um grande suspiro de alívio. – Fiz, como se diz, como Carlos Magno em França.

[como Carlos Magno em França. No original "Ho fatto, come suol dirsi, quanto Carlo in Francia".
Modo de dizer "exagerei" (pois "fiz tanto quanto Carlos Magno", que se arriscou muitas vezes)]

– O que o senhor disse? – replicou Mauro. – Até agora estamos apenas começando...

– Eh, vocês, tudo bem... – observou, sorrindo, don Diego – vocês têm a capacidade, que Deus os abençoe... Eu digo por mim...

– E por quem você nos toma? – indagou Titta, franzindo a testa. – Você crê que nós o convidamos à mesa para um prato só e acabou? Trate de comer, faça a sua obrigação. A nossa obrigação é agradecer–lhe.

– Mas não é ofensa, – apressou–se a desculpar–se don Diego. – Estou dizendo que eu...

– Vai comer! – cortou logo Rosario. – Aqui está a caça de Mauro.

– Uma lebre e cinco tordos? – exclamou aterrorizado don Diego. – Você está enganado, meu senhor! Tenha paciência: como pode imaginar que eu...

– Sem historinha! sem historinha! – disse Nicola, impaciente.

– Mas me olhem um pouco, – respondeu don Diego. – É possível? Onde coloco essa comida? Vocês não vão querer que eu deixe aqui a pele...

– Qual pele? – perguntou Rosario. – O senhor não tem que deixar nada. A lebre foi esfolada.

– Falo da minha, falo da minha! Onde meto uma lebre?

– Te dei também cinco tordos …

– Mais essa! Comerei apenas eles.

– Eta! Irrompeu Mauro, brandindo uma anca da lebre segurada com seus dentes. – Esta caça eu que cacei. Arrebentei minhas pernas por você, três dias seguidos. Se não comer tudo, será uma ofensa dirigida a mim pessoalmente.

– Não se altere... não se altere, por caridade! Vou tentar...

E, entre ele e si mesmo, o pobre don Diego encomendou a alma a Deus misericordioso.

Comendo, o suor começou a escorrer–lhe pela fronte. Erguia um pouco os olhos: via aqueles oito demônios fugidos do inferno não pararem mais de colocar vinho, vinho vinho.

– Cristo, ajude–me! – reclamava baixinho, consigo mesmo.

O jantar não terminava mais. Don Diego queria chorar, rolar por terra, de desespero, arranhar o rosto, desconjuntar a boca, de raiva. Que crueldade era aquela? Neros! Neros! Mas não tinha mais força nem mesmo para afastar o prato: talheres, copos, garrafas rodopiavam diante seus olhos sobre a mesa, as orelhas explodiam, as pálpebras se fechavam sozinhas; enquanto os oito Borgianni, já embriagados, uivavam, agiam como possuídos, ora se levantando, ora se sentando e se insultando uns aos outros.

[Nero: cruel imperador da antiga Roma]

Então, se don Diego empurrava um pouco o prato, dizendo como para si mesmo: – Não quero mais... não quero mais... – os oito gigantes levantavam–se, com facas da mesa em punho, e os dois mais próximos, ameaçando sua garganta, gritavam:

– Coma, don Pateta! Para você é que foi feita toda esta despesa!

Don Diego não estava mais neste mundo, quando entre as pálpebras semi-cerradas vislumbrou o que lhe pareceu uma grande roda de pedra para amolar faca sobre a mesa. Fez então uma vã tentativa de se levantar, de fugir.

– Oh Deus, me amarraram na cadeira! – gemeu, e se pôs a chorar.

Não era verdade: a ele parecia assim, pobre don Diego! Rosario se levantou, tão alto como era, com a faca de trinchar na mão. Don Diego achou que a cabeça de Rosario tocava o teto e que tinha na mão um machado para justiçá–lo.

– Metade para don Diego! – gritou Rosario, cortando ao meio a enorme torta, que ao pobrezinho parecera uma roda de amolador.

– A outra metade é para os vizinhos! - propôs Angelica.

– E nós? – perguntou Mauro. – Nós nada? Eu quero a minha parte! Luca se põe a favor da proposta de Angelica.

– Para os vizinhos! Para os vizinhos!

Don Diego estava fixado naquela disputa, estarrecido.

– E então eu, à força, pego a minha parte! – prorrompeu Mauro, erguendo–se e estendendo a mão para a torta.

Mas Luca foi mais rápido: pegou a torta e, seguido pela família, entre gritos, puxões e empurrões, jogou-a por uma janela. Seguiu–se uma rixa furiosa, irmãos e irmãs se engalfinharam: guinchos, socos, bofetões, arranhões, cadeiras derrubadas, garrafas, copos, pratos estilhaçados, o vinho esparramado sobre a toalha; um pandemônio! Rosario ficou de pé numa cadeira; gritou com sua voz poderosa:

– Vergonha! Que espetáculo! Temos um convidado à mesa!

Ao apelo pelo orgulho aqueles furibundos pararam de repente, como por encanto. Procuraram o convidado: onde estava? Onde se escondera?

Sobre a cadeira a capa, sob a mesa um par de sapatos. O desgraçado escapara com os pés descalços para correr mais rápido.

– No fim das contas, tudo andou bem... – diziam uns para os outros pouco depois os oito Borgianni, recompostos. – Tudo bem, exceto as frutas que nem foram servidas.


Esta é a minha tradução para o conto Un invito a tavola
escrito por Luigi Pirandello e publicado em 1902.

Traduzi do modo mais literal que consegui: usando palavras as mais próximas do texto original, mantendo a pontuação e sintaxe do Pirandello e não reinterpretando o significado com palavras mais atuais ou usuais. Evidentemente isso não foi sempre possível. Todavia, o tratamento pessoal – uso de tu, vós, o senhor, você – eu não respeitei. 

Acho que o resultado ficou bastante curtível, prazeroso.

Para quem não está acostumado com o Pirandello, recomendo que não procurem nele qualquer julgamento de seus personagens – personagem bom x mau, superior x inferior. Seu humor é como uma caricatura – um retrato reconhecível, mas com traços exagerados. Pirandello nasceu e viveu na região da história contada; seus personagens e situações são retratos/caricatura que ele viu de bem perto com um olhar etnográfico.

O original em italiano está em outra página aqui no blog: "Un invito a tavola"

terça-feira, 22 de março de 2022

Un invito a tavola

Luigi Pirandello – 1902


Texto original, em italiano, do conto "Un invito a tavola" de Luigi Pirandello
  

- Basterà? non basterà? - si domandavano, guardandosi negli occhi, in cucina, le tre sorelle Santa, Lisa e Angelica Borgianni, impegnate da due giorni ad ammannire un pranzo da gran signori.

Santa, la minore, era piú alta di Angelica; Angelica, di Lisa, la maggiore. Tutt'e tre, del resto, poppute e fiancute, gareggiavano coi fratelli per la statura colossale e per la forza erculea.

- Famiglia Borgianni: otto colonne! - soleva dir Mauro, il minore dei fratelli e dell'intera famiglia.

Tre sorelle, dunque, e cinque fratelli: Rosario, Nicola, Titta, Luca e Mauro, in ordine di età.

Rosario e Nicola attendevano alla campagna, Titta badava alla zolfara presso il borgo Aragona; Luca faceva l'appaltatore dei lavori pubblici di quasi tutto il circondario; Mauro aveva la passione della caccia, e faceva il cacciatore.

Rosario Borgianni era famoso pe' suoi giovanili furori di bestia feroce. Si raccontavano di lui le piú temerarie avventure ai tempi nefandi del brigantaggio, naturalmente accresciute e abbellite dalla fantasia popolare. Si voleva finanche ch'egli avesse un giorno tenuto testa a una dozzina di briganti, fra i piú sanguinarii, e che li avesse uccisi tutti. Esagerazione! Quattro soltanto: due, nella sua stessa campagna, e gli altri due lungo la via che da Comitini discende ad Aragona.

Anche di Mauro se ne raccontavano di belle. Un giorno, per esempio, a caccia, cadde dalla vetta del Monte delle Forche: rimbalzò tre volte, giú per tre ciglioni selvatici, e ogni volta, rimbalzando con lo schioppo alto in una mano, esclamava.

- Fortuna, che sono ballerino!

Ne riportò tuttavia una frattura alla gamba destra e una leggera commozione cerebrale: lui, che il cervello veramente non aveva avuto mai bene a segno.

Un'altra volta, a caccia, scorse tre o quattro storni su la schiena d'alcuni buoi pascolanti su una costa. Cheto e chinato s'avvicina e, appena a tiro, bum! una schioppettata. Balza dalla fratta, in potere di tutti i diavoli, il boaro.

- Fermo lí! - gli grida Mauro, in guardia. - Se fai un altro passo, ti mando a gambe all'aria!

- Ma come, signor Mauro! Le mie bestie...

- E non sai, minchione, che dove vedo caccia, sparo?

- Ma anche su la schiena delle bestie?

- Anche sul capo di Gesú Bambino, se scambio lo Spirito Santo per un piccione!

 

Il pranzo pareva apparecchiato per trenta invitati, a dir poco; l'invitato invece era uno solo, e neppure si sapeva chi fosse. Si sapeva soltanto che sarebbe arrivato il giorno appresso da Comitini, e che gli si doveva questo pranzo a titolo di ringraziamento per il ricetto prestato al fratello Luca, l'appaltatore, latitante da quindici giorni.

Omicidio? Sí... cioè, no: ma quasi. Ecco: Luca Borgianni aveva preso in appalto la costruzione dello stradone tra Favara e Naro. Una sera, sospesi i lavori, nel tornarsene a cavallo, a un certo punto della via aveva veduto un'ombra allungarsi minacciosa su la ghiaia rischiarata dalla luna. Qualcuno, senza dubbio, stava lí alla posta, incappucciato. Luca lo aveva scorto, per fortuna; o meglio, aveva scorto il cappuccio. Gli era parso che il furfante se ne stesse accoccolato per ripararsi dalla luna che veniva lentamente sú dal colle a manca.

- Chi è là?

Nessuna risposta.

Tra-ta; tra-tà: sú, per precauzione, i cani del fucile. E un grillo s'era messo a cantare.

Allora Luca, di nuovo, fermando il cavallo:

- Chi è là?

Silenzio. Solo il grillo a cantare.

- Conto fino a tre! - aveva gridato infine Luca, impallidendo. - Se non rispondi, fatti la croce. Uno!

L'ombra non s'era scomposta.

- Due!

L'ombra, lí, ferma, impassibile. E silenzio. Soltanto il grillo a cantare.

- Tre!

E una schioppettata. Qualcosa era saltata per aria: e Luca, dàlli al cavallo! Era arrivato a casa, che non tirava piú fiato. Fratelli e sorelle gli erano accorsi intorno.

- Nascondetemi! nascondetemi!

- Perché? Ferito?

- No... ammazzato...

- Tu? Chi?

- Uno... non so... Col fucile... Nascondetemi!

I fratelli lo avevano tolto di peso e portato per il momento giú in cantina. Intanto Mauro era uscito di casa per appurare se già in paese si buccinasse qualcosa intorno all'omicidio. Rosario e Titta avevano atteso impazienti che Luca, lí in cantina, si fosse rimesso un po' in forze per condurlo fuori, in luogo piú sicuro: avevano già pensato al rifugio, presso un loro compare di Comitini, dove Luca si sarebbe recato la notte stessa, cavalcando alla porta del paese. Nicola, armato fino ai denti, era partito per aggirarsi attorno al luogo designato dal fratello e cercar cosí di sapere di che, di chi si fosse trattato. Luca finalmente s'era potuto mettere in cammino. Il giorno dopo, all'alba, ecco Nicola.

- Ebbene?

- Nulla! Ho trovato soltanto un ferrajuolo col cappuccio per terra. Certo il ferito s'è trascinato in paese, lasciando il ferrajuolo lí, bucherellato in piú parti... Luca spara come un Dio! Deve averlo ferito mortalmente, a giudicare dal ferrajuolo... Io non capisco: due buchi grossi cosí nel cappuccio, dunque in testa... Bell'e andato!

Eran passati tre giorni in attesa angosciosa. Non si sapeva nulla in paese; né dai paesi vicini si aveva notizia d'alcun ferimento o caso di morte violenta. Dopo sedici giorni, alla fine, s'era venuto a sapere che un contadino, lavorando in quei dintorni, si era servito per attaccapanni d'una pietra miliare lungo lo stradone; aveva incappucciato la colonnina col ferrajuolo, e la sera se n'era tornato in paese, dimenticandosene. Luca aveva tirato contro quella colonnina, scambiandola per un appostato.

Ora il pranzo, ecco, era lí, pronto fin dalla vigilia, su la lunga tavola in mezzo alla stanza: una pallida porchetta illaurata, ripiena di maccheroni, in una teglia da mandare al forno; sette lepri scojati con contorno di tordi, uccisi da Mauro; due tacchini pettoruti; abbacchio; trippa e cute affettate; piedi di bue in gelatina; un gran pesce salsito; un enorme pasticcio; poi un reggimento di fiaschi e frutta in quantità.

- Basterà? Non basterà?

Titta diceva di sí; Mauro di no; e faceva il conto:

- Noi, otto e, con l'invitato, nove; il servo e la serva undici. Per grazia di Dio, ognuno di noi mangia per quattro, e... e...

- Non dubitare; l'invitato non patirà, - assicurava Titta.

Questa conversazione avveniva su la mezzanotte, intorno alla tavola: fratelli e sorelle, tutt'e sette, avevan lasciato il letto pian piano, spinti dal medesimo desiderio di vedere che effetto facesse il pranzo apparecchiato; e cosí eran convenuti a uno a uno in camicia, con una candela in mano, com'ombre nottambule. Tra Titta e Mauro poco dopo s'accese il diverbio. Mauro brandí una lepre e minacciò il fratello. Vennero alle mani.

- Mazurka! Mazurka! - esclamò in quella Angelica, udendo per fortuna i mandolini e la chitarra d'una serenata giú per la via.

- La Notturna! - esclamò Santa contemporaneamente, battendo le mani e trascinando la sorella a danzare, tutte e due in camicia.

Gli altri allora seguirono l'esempio: Lisa si buttò tra le braccia di Titta, Rosario s'appajò con Nicola, e Mauro, rimasto solo, si mise anche lui a ballare con la lepre dalle orecchie svolazzanti, ridendo allegramente.

 

Nessuno, a prima giunta, fra le strette di mano, gli abbracci e i baci e le domande al fratello Luca (la piú alta colonna della famiglia) badò a un omicello d'età incerta, oppresso da un enorme copricapo che gli sprofondava fin su la nuca, sorretto ai lati dagli orecchi ripiegati sotto il carico. Il poverino pareva commosso dalle espansioni di affetto di quegli otto colossi, i quali non avevano un solo sguardo per lui già tutto smarrito, cosí piccino che non arrivava neppure (compreso il cappello) a le spalle di Lisa, la piú bassa tra le sorelle.

- Oh, aspettate: vi presento don Diego Filínia, inteso Schiribillo, - disse alla fine Luca, sovvenendosi. E gli posò una mano su la spalla, con aria di protezione, sorridendo.

 - Dio, com'è piccolo! - esclamarono allora, a coro, scorgendolo, le tre sorelle. - Schiribillo?

- Complessione, signore mie... nomignolo... - fece don Diego, togliendosi dal capo il gran cappello e sorridendo con umiltà impacciata.

Tutti lo guardarono con occhi pieni di profonda commiserazione, cosí scoperto, senza un capello sul cranio lucido, ovale, protuberante; e non trovarono una parola da dirgli. Oh delusione! Quello lí, l'invitato? E allora... A saperlo avanti!

- Perché piange? - domandò Angelica, dopo averlo osservato a lungo, col volto atteggiato di nausea e di pietà.

- Piange? - fece Luca, voltandosi, abbassandosi, e guardando in faccia da vicino il minuscolo invitato.

- Non piango, no, - rispose don Diego, che stava per recarsi all'occhio destro un gran fazzoletto di cotone a fiorami.

- Nel venire, mi s'è cacciato un bruscolo in quest'occhio qua... Non piango.

- Ah... - esclamarono, rassicurati, i colossi.

Don Diego dagli occhi si recò il fazzoletto al naso lievemente, come per ricevervi di furto una gocciolina.

- Si tolga da le spalle codesto mantello... - gli suggerí Santa.

- No no... per carità, me lo lascino! - si schermí don Diego. - Se, Dio liberi, mi metto a sternutire, son capace di farne cento di fila... Tengo il mantello sempre con me.

E sospirò: - Sí! - poi: - Sí... ... - ancora due volte, imbarazzato dal silenzio sopravvenuto, stropicciandosi continuamente una manina con l'altra e tenendo gli occhi bassi.

Nessuno sapeva risolversi a parlare, e quella perplessità diveniva di minuto in minuto piú penosa.

- Abbiamo davvero l'obbligo, - cominciò a dire finalmente Luca, - di restar grati a don Schiribillo del gran favore e delle cortesie usatemi durante il soggiorno in Comitini.

- Noi lo ringraziamo con tutto il cuore! - disse allora Rosario, tendendo una mano all'ospite. - Come si chiama? Schiribillo?

- Prego... no: Filínia; mi chiamo Filínia, - fece don Diego, sorridendo umilmente.

- Fate conto che la nostra casa sia vostra, - aggiunse Nicola, stringendo a sua volta la mano all'invitato e guardando gli altri fratelli come per dire: «Adesso a voi; io ho detto la mia».

Titta e Mauro, uno dopo l'altro, seguirono l'esempio e dissero la loro, avanzandosi d'un passo, militarmente, e stringendo dopo il complimento la mano a don Diego, il quale non seppe allontanarsi da quel suo: «Prego, prego» in risposta.

Non fu possibile cavare una parola di bocca alle tre sorelle deluse.

Si parlò dell'avvenimento per cui Luca si era reso latitante.

- Ma che colonnina! - esclamò questi indignato. - Uomo in carne e ossa era, là, appostato! Se alla schioppettata ho sentito un grido, io, con questi orecchi... Vorrei saper piuttosto chi sia il buffone che ha messo in giro la storiella. Gli farei vedere se è lecito ridere alle spalle di Luca Borgianni!

- Basta, basta... - disse Rosario. - Chi sia, l'ha detto. Adesso non se ne parli piú. Pensiamo per oggi a divertirci.

Don Diego approvò col capo, non perché si promettesse un divertimento, poverino, tra quegli otto giganti; ma per tôr di mezzo ogni lite. Non si sa mai!

Attendendo la chiamata a tavola, Rosario e Nicola cominciarono a discorrere con l'invitato delle cose della campagna, delle cattive annate e delle buone. Don Diego, con l'umiltà sua, si rimetteva costantemente nelle mani di Dio; ma questa remissione a un certo punto fece uscir dai gangheri Nicola.

- Ma che mani di Dio! Ci vogliono braccia d'uomini per la terra! Queste qua, guardate, Schiribillo!

E mostrò a Don Diego, protese e con le pugna serrate, le erculee braccia, come se lui fosse solito di pigliare a cazzotti la terra per costringerla a rendere ogni anno piú del dovere.

- E queste qua, benché vecchie e faticate! - esclamò Rosario, mostrando le sue.

Allora anche Titta e Mauro vollero mostrar le loro, tirando su le maniche della giacca e della camicia. Il povero Don Diego si vide puntate sotto il naso otto braccia nerborute, buone da accoppare otto buoi.

-Vedo... vedo... - diceva a ognuno, guardando le braccia e sorridendo con una meraviglia mista di costernazione. -Vedo... vedo...

- Toccate! Toccate! - gl'intimarono i fratelli Borgianni.

E don Diego toccò pian piano con un dito tremante quelle braccia, mentre con l'altra mano si recava sotto il naso il fazzoletto per paura qualche gocciolina non vi cadesse sopra, Dio liberi!

- A tavola, - venne ad annunziare Santa, mollemente.

- Schiribillo, a tavola! - gridò Mauro. - Lasciate fare a noi. Crescerete... Mangerete tanto, che non vi sarà piú possibile uscire dalla porta. Vi caleremo imbracato e satollo da una finestra.

- Son di pochissimo appetito, - premise don Diego, per ogni buon fine.

- Dove prenderà posto l'invitato? - domandò sottovoce Titta alle sorelle.

- Tra Rosario e Lisa, - propose Mauro. Lisa si ribellò:

- Noi tre donne ce ne staremo in disparte.

Don Diego prese posto tra Rosario e Nicola. Gli otto Borgianni, appena seduti a tavola, si riempirono di vino i grossi bicchieri da acqua.

- Per farci la croce! - disse Rosario solennemente.

E giú!

- Voi, don Diego, non bevete? - domandò Titta.

- Grazie, prima del pasto, mai, - si scusò l'ospite timidamente.

- Eh via, per aprir l'appetito, - gli suggerí Nicola, dandogli in mano il bicchiere.

Allora don Diego lo accostò alle labbra, per cortesia, e lo scoronò appena appena con un sorsellino cauto.

- Giú! giú fino in fondo! - lo incitarono gli otto Borgianni.

- Non posso... grazie, non posso...

Mauro si levò da sedere:

- Lo riduco io a ragione, aspettate!

Prese con una mano il bicchiere, con l'altra il capo di don Diego e, dicendo: - Lasciatevi servire! - lo vuotò in bocca al poveretto invano riluttante.

- Oh Dio! - singhiozzò, balzando in piedi, don Diego, mezzo affogato, con gli occhi pieni di lagrime. - Oh Dio!

E s'asciugò il sudore della fronte, tra le risa della tavolata.

- Guardate, oh! Gli è uscito dagli occhi! - osservò Angelica, beffardamente.

Venne in tavola la porchetta imbottita. Rosario si levò in piedi; trinciò le parti: la piú grossa a don Diego.

- Troppa roba... troppa... troppa... - disse questi col piatto in mano.

- Che troppa! - esclamò Nicola. - Non cominciate!

- La metà, prego... - insistette don Diego. - Non mi è possibile... Io sono parco...

- Parco? E codesta è carne di porco! Mangiate! - gridò Mauro, levandosi un'altra volta da sedere.

Don Diego, spaventato, chinò la testa sul piatto e si mise a mangiare zitto zitto.

Mangiarono quel primo servito in silenzio, tutti. Solo, di tanto in tanto, appena l'invitato accennava di posar furtivamente la forchetta:

- Mangiate! - gli ripetevano i colossi. - Fino all'ultimo boccone!

- E adesso proprio non mi è piú possibile mandar giú dell'altro! - protestò don Diego, con qualche energia, dopo aver finito la porzione, traendo un gran sospiro di sollievo.- Ho fatto, come suol dirsi, quanto Carlo in Francia.

- Che dite? - rimbeccò Mauro. - Se abbiamo cominciato appena adesso...

- Eh, loro, va bene... - osservò, sorridendo, don Diego. - Hanno la capacità, Dio li benedica... Io dico per me...

- E per chi ci prendete? - si rinzelò Titta, accigliato.- Credete che noi invitiamo a tavola per un sol piatto e lí? Attendete a mangiare e fate l'obbligo vostro. Noi dobbiamo disobbligarci.

- Ma non faccio offesa, - s'affrettò a scusarsi don Diego.- Dico che io...

- Voi mangerete! - tagliò corto Rosario. - Ecco la caccia di Mauro.

- Una lepre e cinque tordi? - esclamò atterrito don Diego. - Lei sbaglia, signor mio! Abbia pazienza: come può immaginarsi che io...

- Senza storie! senza storie! - disse Nicola, con fare sbrigativo.

- Ma mi guardino un po', - rispose don Diego. - È possibile? Dove la metto? Non vorranno mica che ci lasci la pelle...

- Quale pelle? - domandò Rosario. - Non dovete lasciarci nulla. La lepre è scojata.

- Dico la mia, dico la mia! Dove la metto una lepre?

- Vi ho dato pure cinque tordi...

- Per giunta! Ci avessi la lupa... Mangerò questi soltanto.

- Orsú! - proruppe Mauro, brandendo un'anca di lepre a cui dava a leva coi denti. - Codesta caccia l'ho fatta io. Mi sono rotte le gambe per voi, tre giorni di seguito. Se non mangiate tutto, sarà un'offesa diretta a me personalmente.

- Non si alteri... non si alteri, per carità! Mi proverò...

E, tra sé e sé, il povero don Diego raccomandò l'anima a Dio misericordioso.

Mangiando, i sudori cominciavano a colargli dalla fronte. Alzava un po' gli occhi: vedeva quegli otto demonii scappati dall'inferno non finir mai d'imbottar vino, vino, vino. E:

- Cristo, ajutami! - si lagnava piano, tra sé.

Il pranzo non finiva mai. Don Diego avrebbe voluto piangere, rotolarsi per terra, dalla disperazione, graffiarsi la faccia, sgangherarsi la bocca, dalla rabbia. Che crudeltà era quella? Neroni! Neroni! Ma non aveva piú forza neppure di scostare il piatto: posate, bicchieri, bottiglie gli turbinavano davanti agli occhi su la tavola, e gli orecchi gli rombavano, le pàlpebre gli si chiudevano sole; mentre gli otto Borgianni, già ebbri, urlavano, gestivano come energumeni, or levandosi, or sedendosi e ingiuriandosi a vicenda.

Adesso, se don Diego scostava un po' il piatto, dicendo come a se stesso: - Non ne voglio piú... non ne voglio piú... - gli otto giganti sorgevano in piedi, coi coltelli da tavola in pugno, e i due piú vicini, minacciandolo alla gola, urlavano:

- Mangiate, don Minchione! Per voi è stata fatta la spesa!

Don Diego non era piú di questa terra, quando tra le pàlpebre semichiuse gli parve di scorgere su la tavola come una gran mola d'arrotino. Fece allora un vano tentativo di levarsi, di fuggire.

- Oh Dio, m'hanno legato alla seggiola! - gemette, e si mise a piangere.

Non era vero: gli pareva cosí, povero don Diego! Rosario si alzò quant'era lungo col trinciante in mano. Parve a don Diego che toccasse col capo il soffitto e che avesse in pugno una mannaja per giustiziarlo.

- Metà a don Diego! - gridò Rosario, tagliando a mezzo l'enorme pasticcio, che al poveretto era sembrato una mola d'arrotino.

- L'altra metà al vicinato! - propose Angelica.

- E noi? - domandò Mauro. - Noi niente? Io voglio la mia parte!

Luca sorse in favore della proposta di Angelica.

- Al vicinato! al vicinato!

Don Diego pendeva da quella lite, esterrefatto.

- E allora io, per prepotenza, mi prendo la mia! - proruppe Mauro, levandosi e stendendo la mano sul pasticcio.

Ma Luca fu piú svelto: prese il pasticcio e, inseguito dalla famiglia, tra le grida, gli strappi, gli spintoni, andò a buttarlo da una finestra. Seguí una rissa furibonda: fratelli e sorelle s'accapigliarono: strilli, pugni, schiaffi, sgraffi, seggiole rovesciate, bottiglie, bicchieri, piatti in frantumi, il vino sparso su la tovaglia; un pandemonio! Rosario salí in piedi su una seggiola; gridò con poderosa voce:

- Vergogna! Che spettacolo! Abbiamo un invitato a tavola!

Al fiero richiamo quei furibondi ristettero a un tratto, come per incanto. Cercarono l'invitato: dov'era? dove s'era cacciato?

Su la seggiola il mantello, sotto la tavola un pajo di scarpe. Il disgraziato se l'era svignata a piedi scalzi per correre piú spedito.

- In fin dei conti, è andato tutto bene... - dicevano tra loro poco dopo gli otto Borgianni, rassettati. - Tutto bene, tranne il servito della frutta.