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sábado, 26 de setembro de 2015

A Cidadela, de Cronin. Por que todos devem ler esse livro?

por Luiz Carlos Monte

A ética é possível?

Essa foi certamente uma das leituras mais importantes que fiz em 2014. Surpresa total.

Quando adolescente, costumava ver esse livro na estante do meu pai, mas, com esse título e com o nome desse autor, não me despertou curiosidade. Imaginava um livro sisudo. Preferi desbravar a biblioteca paterna pelos Jorge Amado e Henry Miller. Ah, os hormônios...!

Com os livros eletrônicos, o título me reapareceu.

Detesto fazer escolhas, prefiro sempre que algum algoritmo faça-a para mim. No caso, ler A Cidadela porque era um ebook e tinha acabado de ler um livro de papel – seria o meu segundo livro lido no kobo – e, principalmente, porque na ordem alfabética de autores ele aparecia entre os primeiros: A. J. Cronin. O primeiro livro no kobo que eu li foi da Agatha Christie, como contei aqui. Eu tinha o texto em inglês "The Citadel", mas parti para a versão lusa mesmo.

The Citadel (wikimedia)


A surpresa foi ver como esse livro, escrito em 1937, era atualíssimo. Ao contar a história do médico Andrew Manson, inspirada em fatos vividos e testemunhados pelo autor, também médico, o tema da ética médica é “materializado” no enredo que acompanha a carreira do personagem. O leitor, acompanhando a vida do casal, é capturado pela plausibilidade das situações e de todos os personagens. Mais do que isso, pela realidade dos fatos que, com naturais variações, ocorrem até hoje. A questão ética não é exposta explicitamente. Os conflitos éticos estão lá, presentes nas muitas situações vividas com emoção.

Henfil e a ética médica


Para mim foi meio assustador ver que há uma certa inevitabilidade na desvirtuação do caráter de quem lida com a Medicina. Deve ser minha tendência pessimista, porque o livro até tem um desfecho moral. Mas, ao lembrar que muitas coisas mostradas acontecem de modo muito semelhante ainda hoje, a minha tendência acaba falando alto.

Daí, considerei A Cidadela uma leitura obrigatória. Principalmente para os médicos. Passei a achar estranho médicos que não leram esse livro. Não só para os médicos; obrigatória também para pacientes (nós, né?), para aprendermos a olhar os truques dos doutores e da indústria farmacêutica.

Um livro de impacto

Parece que a criação do sistema de saúde inglês (National Health Service), cerca de uma década (1948) após a publicação do livro, foi aprovada como consequência dos debates disparados pela obra. É crível, mas pouco do livro sugere explicitamente uma solução estatal / socialista, como é o NHS. É clara a precariedade do sistema que existia na época na qual a história foi passada e escrita.

Entendi muito mais a origem do viés socialista do NHS quando assisti o excelente documentário O Espírito de '45 do cineasta esquerdista Ken Loach. O filme descreve a campanha, ascensão e governo do Labour Party (trabalhistas) logo após a guerra, sob o mote "se nos unimos e nos esforçamos para vencer Hitler, por que não fazermos o mesmo para reconstruir o país?". Assistir o filme mexe até com o mais empedernido liberal. Deve-se depois assistir o filme Thatcher como antídoto. Rsss...


Logo em 1938, ano seguinte à publicação do romance, foi lançado um filme. Quase uma dezena de outras adaptações foram feitas para a tv e para o cinema, inclusive indiano.


A história

As resenhas do enredo costumam contar coisas demais sobre o livro. Não vou fazer isso.

Em 1921, o recém-formado Dr. Andrew Manson, escocês, 24 anos, vai trabalhar em uma pequena cidade do País de Gales dominada pela mineração de carvão. Seu trabalho associa clínica e pesquisa. A lida com os mais diversos tipos humanos, sejam pacientes, médicos, empresários ou burocratas é um ponto alto do livro. A sua luta diária, o sucesso da sua pesquisa e os benefícios que seguem, o progresso de status que acompanha seu crescimento na carreira, juntamente com a maturidade e as tentações próprias do ofício, transforma-o paulatinamente no oposto do que fora. Naturalmente o romance se encaminha então para crises pessoais que o levam a refletir sobre suas decisões anteriores.

Dito assim, não tem graça nenhuma, né?

Cartum de Waldez
em http://waldezcartuns.blogspot.com.br/2011/06/fale-com-seu-medico.html


Pelo caminho passamos por profissionais que se aproveitam de suas posições burocraticamente superiores para manter seus privilégios independentemente do mérito ou condição, pela indiferença à assistência aos lugares e indivíduos mais necessitados, pela charlatanice, pelos medicamentos inócuos, pela desinformação e incompetência, pela falta de saneamento, pelos que veem a verdade e são discriminados e até isolados socialmente.

Mas também vemos os que querem alterar a situação nem que tenham que fazer coisas não "legais"; vemos os que percebem a necessidade de empatia pelos seus pacientes; vemos os dedicados.

Muito mais há ainda: complôs para difamação; reconhecimento natural da competência pelos beneficiados por melhoras ou curas; e por aí vai. Tudo dentro de um romance.



O que mais me tocou foi ver a atração que o dinheiro e o status exercem quando se tem poder sobre a saúde das pessoas. Daí médicos que só se interessam pelo ganho social obtidos com pacientes ricos ou famosos. Daí também as redes de médicos que se recomendam mutuamente para alcançar a ascensão mútua. Daí os medicamentos e exames desnecessários, prescritos apenas para manter o cliente, frequentemente hipocondríacos, satisfeito. Daí a ostentação nos hábitos e consultórios. Daí a diferença de atendimento e atenção aos ricos e aos pobres. Daí os preços exorbitantes das consultas particulares. E muito mais. Tudo o que pode ser encontrado na mesma situação ainda hoje.

Charge de Sinovaldo


O Autor!

A. J. Cronin (wikipedia)


A primeira parte do livro é claramente baseada na experiência vivida pelo autor como médico em início de carreira. Todavia, sua vida como escritor me parece mais surpreendente. Escreveu muitos best-sellers que foram traduzidos para inúmeras línguas.

Archibald Joseph Cronin (1896-1981) escreveu mais de 30 livros, frequentemente adaptados para as telonas e telinhas. Pelo seu sucesso, há quem diga (NHS Scotland) que ele foi a J.K. Rowling do seu tempo.

Sua força está na narrativa, diálogos e caracterização de personagens interessantes. E também no realismo e na crítica social.

Seu romance The Stars Look Down, de 1935, inspirou o filme Billy Elliot e a canção (composta pelo Elton John) de abertura do musical faz homenagem ao livro.

Livro que inspirou o filme Billy Elliot


E a tal cidadela?

Ao final do livro era essa a pergunta que eu fazia.

Há duas menções a essa palavra no romance.

A primeira é Christine, que dialoga com ele sobre sucesso na vida no meio da segunda parte do livro:
- Não te lembras de que consideravas a vida como se fosse um assalto ao desconhecido, uma investida para a altura?... Era como se quisesses conquistar uma cidadela que não vias mas que tinhas a certeza de que estava lá, no alto...
A segunda menção é no último parágrafo:
E quando Manson partiu afinal, apressando-se para não perder o comboio, viu que as nuvens acumuladas no horizonte tomavam a forma de uma cidadela.
Haja memória para o leitor associar essa sentença à de muitas páginas anterior.



Antes de fazer a busca pela palavra no texto, fiquei intrigado por não ter entendido exatamente o último parágrafo. E resolvi olhar a versão que eu tinha do texto em inglês. Ahn? não há qualquer referência à palavra citadel, exceto no título! O que Manson vê no céu inglês são nuvens formando "the shape of battlements" - formas de muralhas!

O tradutor estava inspirado!

Um exame mais acurado mostrou que as duas versões não batiam. Parecem de escritores diferentes. A versão lusa apresenta muito mais detalhes, menciona muitas localidades que não aparecem na versão inglesa que eu tinha. Conclusão: meu ebook em inglês era uma adaptação e não o texto original.

Pode isso Arnaldo?

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Spandauer Vorstadt

por Luiz Carlos Monte

Em busca de uma nipo-hamburgueria

Último dia de Berlim, 19 de julho de 2015. Depois do museu do Pérgamo, ainda dava um tempo para mais um passeinho explorando a região de Spandauer Vorstadt, uma das regiões que merecia uma visita e não tivemos tempo de explorar suficientemenete, como contei no post Berlim, julho de 2015

Spandauer Vorstadt

Vorstadt quer dizer subúrbio, o que deve ter sido algum dia. Hoje, Spandauer Vorstadt faz parte do mitte (centro) de Berlim. Sua parte oriental chama-se Scheunenviertel, pedaço que nem fomos. Frequentemente os guias se referem a todo Spandauer Vorstadt como sendo Scheunenviertel, mas o certo é o contrário.

Spandauer Vorstadt e Scheunenviertel (clique para ampliar).

Nos dois dias apressados que passeamos aí, vimos e apreciamos: (clique no mapa acima para ver os locais)
  1. o memorial dos judeus (falo mais dele adiante neste post), 
  2. o parque Monbijou
  3. o Hackescher Markt com seus bares (fomos no Weihenstephaner), 
  4. o Hackescher Hof (uma interessantíssima e intrincada galeria); 

  5. passamos

  6. pelo Strandbar Mitte (bar na beira do rio), 
  7. pela Rosenhöfe (outra galeria), 
  8. pela Sophienkirche (igreja de Sta. Sofia) 
  9. e pelo antigo cemitério judeu (Alte Jüdische Friedhof).

  10. Parece que ainda há outras atrações nessa região:

  11. o Clärchens Ballhaus (antigo salão de dança), 
  12. o Kunst-Werke (KW. Arte contemporânea, com o Café Bravo, famoso pelos seus bolos), 
  13. o Heckmann Höfe (outra galeria, com jardim e uma loja de balas estilo antigo, a Bonbonmacherei), 
  14. caminhar pela rua Oranienburger 
  15. e a Nova Sinagoga (Neue Synagoge) que vimos de longe várias vezes. 

  16. Há também

  17. o teatro de revista Friedrichstadt-Palast
  18. o centro de arte Kunsthaus Tacheles
  19. o prédio dos correios (Postfuhramt)
  20.  e certamente outras coisitas.

Große Hamburger Straße

Após o museu, no nosso último dia de Berlim, como a necessidade de comer nos guiava, tomamos uma direção determinada, seguindo a Große Hamburger Straße, que imaginei ser a "rua do hambúrguer grande", rumo ao Shiso Burger.


Seguimos a rota que no mapa acima está desenhada com uma linha roxa, saindo do Pergamonmuseum. No início da Burgstraße, no James-Simon-Park, vimos umas pessoas em volta de uma escultura e fomos lá ver. É um grupo escultório muito estranho, em memória do educador Adolph Diesterweg. 


Memorial a Adolph Diesterweg (wikipedia)

Minha foto é só de um detalhe do grupo escultório.

No início dessa rua Große Hamburger, há o antigo cemitério judeu e, na calçada dele, o grupo escultório Jüdische Opfer des Faschismus (judeus vítimas do fascismo) de Will Lammert, à guisa de memorial.

Memorial Jüdische Opfer des Faschismus (judeus vítimas do fascismo)

Detalhe

O local foi cemitério judeu desde 1672, até ser destruído pelos nazistas.

Mais adiante na Große Hamburger Straße, vem a igreja de Santa Sofia. Vimos de longe porque nosso objetivo era outro...

Igreja de Santa Sofia (Sophienkirche)

Shiso Burger

Comer um hambúrguer sentado era uma boa pedida. A preocupação com a hora de partir, o cansaço da fila e da visita ao museu e a tal da fome serviram de estrela de belém. Alguém tinha recomendado e fomos ao Shiso Burger. Seguimos a Große Hamburger Straße até a Auguststraße, viramos à direita e no número 29 achamos o lugar.

É bem pequeno, mas dobra seu espaço com umas mesas na calçada. Sabíamos que é procuradíssimo e fica apinhado com longas horas de espera (tem gente que pede pra viagem e come em alguma praça). Mas ainda nem eram 18h do domingo. O nosso famoso truque de só ir a restaurante nos horários mortos funcionou mais uma vez. Logo-logo conseguimos um lugarzinho para dois, na parte de dentro, como queríamos, porém meio espremidos por um casal espaçoso ao lado.

Não precisa perguntar a senha do wi-fi !!
Tenho preguiça de escolher prato. Daí gostei do lugar só ter 9 opções, todas hambúrgueres: Uma de carne angus; outra, do mesmo acrescido de queijo; outras opções são de camarão, atum, salmão e duas veggies (de cogumelos ou de berinjela). Pedimos o cheeseburger de angus, carne de primeiríssima qualidade. Além da carne e do pão excepcionais, os sanduíches contêm ingredientes, alguns orientais, caprichosamente os tornando únicos. Não comerás algo semelhante em outro lugar. E se não tivéssemos pedido vinho e coca-cola, beberíamos refrescos e drinks também únicos.

Sim, o sanduíche não é grandão.

A maioria das mesas pedira batatas fritas torcidas, nós imitamos. Tínhamos visto isto em vários lugares, mas ainda não experimentado. É bem bom, mas esfria mais rápido.

Twisted potato.


Tudo vem servido em steamers de bambu, o que é bonitinho e dispensa a lavagem de pratos...

O lugar é simpático, provavelmente pelo público que o frequenta (ok, é hipster), já que o ambiente é bem simples e o atendimento lento e não carinhoso. A decoração usa uma madeira clara que, no balcão do caixa, lembra caixotes. Ou seja, rústico chique. A Adriana se assustou um pouco com o chão escorregadio de gordura. A comida estava bem gostosa (lembrando sempre que trouxéramos os principais temperos: fome, cansaço e boa vontade).

Era o último passeio da viagem. No início dela, evitávamos gastar notas para não ter que ficar sacando; pagávamos tudo no cartão (crédito ou débito). Talvez evitássemos o Shiso Burger, se tivéssemos por lá passado, pois só aceita dinheiro vivo.

Só dinheiro vivo. Antipático? Não com o Johnny avisando.

Shiso

Quem olhar o menu do restaurante, verá que o tal hambúrguer de atum é chamado de Shiso Burguer, o mesmo nome da casa, e contém uma folha de shiso como ingrediente. O próprio site descreve laconicamente que shiso "é uma folha". E parece que sem graça.

Folha de Shiso. Comumente serve como leito de wasabi ralado (wikipedia).


sábado, 5 de setembro de 2015

Alimento

por Fatima Flórido Cesar

Tem todo tipo de alimento. E tem todo tipo de fome. Às vezes é fácil, às vezes difícil acertar o alimento capaz de saciar aquela fome.

É que nem sede. Se você tem sede de água, só serve água e não tem palavra para descrever a delícia que é encontrar o que se anseia. Matar a sede.

Tem todo tipo de alimento. Isso também porque somos muitos no dentro da gente. Então, cada faceta do ser pede uma comida que traz promessa de saciedade. Também, se a gente é feita de um jeito tal, tem comida que nem entra.

Por exemplo, tem gente que não gosta de shopping. Eu já adoro: é uma faceta minha que me destrambelha. É vizinha de outras facetas tão diferentes: tipo gostar de escrever, ler Clarice Lispector, ser pescada por filme profundo.

Acho que sou múltipla. Todo mundo é: casa cheia de andares, portas e janelas. Mas acho que sou múltipla demais: tenho fome de shopping, de livro de suspense e de profundo. Ás vezes dá confusão: porque quem me conhece de shopping desconhece o lado do profundo. E vice-versa: causa espanto combinar poesia com consumismo.

Também gosto de livro de suspense, gosto que mora ao lado do amor pela poesia. Poesia é um alimento que me dá muita sustança e se estende para além dos livros: porque vai para música e pra filme. Música sacia os sentidos, pesca sonhos. Aliás, tem alimento que entra na categoria de sonho: sentir profundo, poesia, música, filme especial. Especial, porque nem todo filme faz sonhar. Tem outros tipos que também são alimento: comédia, por exemplo. Mas tem que gostar.

Ontem fui assistir uma comédia: era o que a vida me oferecia. Mas não achei graça e ainda saí de barriga vazia. Tinha fome de filme profundo.

Profundo. Profundo. Palavra batida, né? Mas não tem outra para fazer um laço com sonho. Ah! Tem a palavra encantamento. Isso! Tem fome de encantamento. E tem coisa melhor do que quando essa fome é saciada? A gente ganha um tipo de nutriente que torna a pessoa encantada.

Ah! Tenho outra fome também que para quem conhece meu lado de sonho, pode até estranhar. Adoro novela e já gostei de programa bobo. Dizem que novela é rasa, e deve ser mesmo, mas eu viajo, distraio e sempre tem paixão. Paixão me fisga e ai pode até ser paixão barata. Paixão é um alimento que me atrai desde a adolescência. E continua. Paixão também atrai muita gente: mora ao lado do encantamento.

Também cada conversa é um tipo de alimento. Tem conversa que dá alma ,tem conversa que distrai, tem conversa que suga e tem conversa que entedia. Bem, tem muitos outros tipos. Sou muito sensível à conversa. Conversa sobre roupa me anima. Mas tem conversa que me desperta um desejo de comunicação e dá vontade de não sair de perto. São conversas com pessoas que compartilham o essencial da vida. Mas tem conversa que me deixa murchinha e eu vou ficando distante, distante. Sem alma.

A pessoa tem fome de todo tipo de alimento: desde aqueles que fazem sonhar até aqueles que distraem a gente de um jeito simples, pode ser até bobo ou barato. A gente é muitos e a fome é grande. Quando fica fraquinha é sinal de tristeza, inanição de alma. Quero fome. Muita fome. Quero ficar cheia de vida: desde vestido bonito até verso que diz “a praia inicial da minha vida”(Sophia de Mello Breyner).