O primeiro Agatha Christie é bom?
por Luiz Carlos Monte
Nunca tinha
lido um livro da Agatha Christie. E eles eram uma febre lá em casa. Minha mãe,
por exemplo, diz que leu todos (acredito que tenha lido todos que estiveram ao
seu alcance, não os 66 romances de detetive que a Agatha escreveu). Eu
implicava com best-sellers...
E põe best
seller nisso! O Guinness a aponta como o autor mais vendido do mundo, com mais
de 4 bilhões de exemplares.
Nunca é tarde
para começar e resolvi começar do começo: O Misterioso Caso de Styles, o primeiro
livro dela, escrito em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial.
Gostei.
Talvez não o suficiente para me tornar um aficionado. É o primeiro livro que
ela escreveu, provavelmente seu estilo foi se aperfeiçoando com os anos. Mas
para uma estreia, é um tanto inesperadamente perfeito.
Poirot entra em cena
Já nesse
primeiro livro, ela apresenta quem se tornará o seu detetive mais famoso:
Hercule Poirot. Suas características físicas, sua personalidade e seu método
são introduzidos aí para todo o sempre. Também é justificada a sua origem.
Poirot é belga, mas devido à guerra encontra-se refugiado na Inglaterra.
Poirot era um homem
extremamente baixinho. Não deveria ter mais do que 1,60m, mas tinha seu orgulho
próprio e andava de cabeça erguida. Sua cabeça tinha o exato formato de um ovo,
mas ele nunca ligou para isso. Tinha um estilo militar; a limpeza de suas
roupas era de invejar, acredito que causaria mais dor nele uma mancha de
sujeira do que um tiro. Este homenzinho esquisito, que mancava um pouco, foi na
sua época um dos melhores membros da polícia Belga. Como detetive tinha um
talento extraordinário, conseguindo resolver casos complexos e emaranhados.
Outro personagem que ela produz para aparecer em várias histórias é o narrador desta
história: Arthur Hastings, um
oficial do exército inglês que, de licença para tratar da saúde, aceita o
convite de seu amigo John Cavendish para descansar em Styles, uma mansão rural típica
da época no interior de Essex. Nesse livro ele tem veleidades de investigador,
o que acabará se tornando em outros livros.
 |
| A fictícia Styles fica em Essex |
Dois policiais da Scotland Yard também aparecem no meio da história, com muito menor
importância e caracterização. Todavia, um deles, Inspector Japp estará
presente em outras histórias, conforme pesquisei.
Kobo
Para ler,
usei o leitor de livros digitais Kobo que ganhei de aniversário. Nele armazenei
uma infinidade de livros digitais. O nome Agatha é um dos primeiros a aparecer
em ordem alfabética...
.jpg) |
| O livro no kobo |
Comecei com
uma versão em português. Até que cheguei a um parágrafo que simplesmente não
consegui entender, pior do que os anteriores. Como tinha o original em inglês,
fui verificar e vi que estava perdendo muito lendo em português. Traduções
erradas, trechos omitidos e o estilo original perdido. Recomecei o livro, agora
na sua versão original, em inglês. Como o Kobo tem dicionários embutidos,
acessáveis por um toque nas palavras, não foi tão difícil quanto esperava.
Demorei mais,
evidentemente. Nem sempre uma palavra era encontrada no dicionário, que mesmo
assim é muito bom. Não tanto quanto a versão paga do Babylon que tenho no
notebook e que também é acessível com um clique do mouse (mas não funciona no
Chrome!!!).
Os personagens
Como não
posso ler de carrada
– passo até dias sem poder pegar no livro
– o que me
atrapalhou muito foram os nomes dos (poucos) personagens. Ora são identificados
pelo nome completo, ora pelo sobrenome, ora pela sua relação de parentesco,
etc. Eles são introduzidos todos de uma só vez, quando Hastings, o narrador,
chega a Styles e é apresentado aos próprios. A partir daí, é a memória do leitor
que vale.
Listo os
personagens (com fotos de atores obtidas em http://de.agathachristie.wikia.com/) para ajudar os futuros leitores. São:
- Arthur Hastings (Hastings) – o narrador, amigo de John e de Poirot.
 |
| Hastings e Poirot (Hugh Fraser e David Suchet) |
- John Cavendish (Mr. Cavendish; John) – amigo de Hastings, convidou-o a passar sua licença médica em Styles.
Encontra-se em situação pré-falimentar.
 |
| John Cavendish (David Rintoul) |
- Emily
Inglethorp (Mrs. Inglethorp; Emily) – a madrasta de John, viúva do pai de John, casou-se pela segunda vez e mudou o
sobrenome.
 |
| Emily Inglethorp (Gillian Barge) |
- Evelyn
Howard (Evie; Miss Howard; Evelyn) – o eficiente braço direito de Emily na
administração dos negócios.
.jpg) |
| Evelyn Howard (Joanna McCallum) |
- Alfred
Inglethorp (Alfred; Mr. Inglethorp) – o novo marido de Emily, apresentado
desde o início como um aproveitador, 20 anos mais novo que sua rica esposa.
Todos, exceto a matriarca, o odeiam. Torna-se suspeito, para o leitor (através
de Hastings, que conduz o leitor pelos acontecimentos) desde o início, antes
mesmo de haver qualquer crime. Diz-se parente distante de Evie, que alega não o
conhecer.
.jpg) |
| Alfred Inglethorp (Michael Cronin ) |
- Cynthia Murdock
(Cynthia, Miss Murdock) – enteada de Emily, que trabalha em um hospital da Cruz
Vermelha (onde há venenos...!).
.jpg) |
| Cynthia (Ally Byrne) |
- Mary
Cavendish (Mrs. Cavendish; Mary) – a esposa de John, que, sedutora, encanta
Hastings. Este, por sua vez, releva sempre as ações dela. Este fraco por
mulheres bonitas será um traço da personalidade de Hastings presente em outras
histórias com ele.
- Dr.
Bauerstein – sumidade em venenos (!), recebe uma atenção mais do que
especial de Mary Cavendish, o que causa ciúmes e suspeita em Hastings.
 |
| Capa da edição alemã com os medicamentos de Emily |
- Lawrence
Cavendish (Lawrence) – irmão de John. Ambos são filhos da primeira esposa do
pai. Quando, após a morte dela, o pai se casou com Emily, e posteriormente
morreu, a propriedade de Styles passou para Emily.
.jpg) |
| Lawrence Cavendish (Anthony Calf ) |
- Hercule
Poirot – famoso policial belga. Coincidentemente está na cidade próxima a
Styles e sob a generosidade de Emily Inglethorpe.
 |
| Hercule Poirot |
- Empregados da casa, com destaque para a chamada Dorcas.
A matriarca
Emily é intempestiva e muda seu testamento a cada briga. Só que...
...
Qualidades
A narração de
Hastings, como disse, tem o propósito de conduzir as suspeitas do leitor. Mas
estas suspeitas também são suspeitas, pois ele não tem método, ao contrário de
Poirot. Este manobra o raciocínio de Hastings e até os próprios acontecimentos,
mantendo o segredo de suas reais deduções até o final.
Simples, né? Só
que não!
Tudo, cada
palavra, cada linha, cada fato no livro é importante para o desfecho brilhante
de Poirot. E não há perigo do leitor se esquecer de algum desses fatos (ok, nem
todos...), pois o próprio Poirot frequentemente os retoma, infelizmente nos
levando também para pistas falsas (arenques vermelhos, em inglês; peixes usados
para fazer cães farejadores perderem uma pista). O próprio ato de não revelar e
até manobrar as suspeitas acaba sendo justificado tintim por tintim pelo Poirot
ao final do livro.
Aí está o grande
mérito do livro. Os dados estavam lá, mas o leitor é incapaz de decifrar a
realidade. Lógico que Poirot apresenta provas que não estavam acessíveis ao
leitor e ao Hastings. Mas as conjecturas do que ocorreu poderiam ser feitas
pelo leitor. As pistas falsas, na verdade, eram hipóteses que precisavam ser
analisadas, e então aceitadas ou refutadas. Mas acabavam desviando a atenção do
leitor de outras hipóteses.
Ela escreveu
esse livro por conta de uma aposta de que poderia mostrar todos os fatos e,
mesmo assim, o leitor não desvendar o mistério. Ponto para ela. O livro é muito
boa diversão.
Mas nem tudo são
flores. Não gostei e não aceitei certas manipulações do Poirot que poderiam
afetar o destino dos indivíduos. Embora ele tenha sido movido pelas melhores
intenções, achei prepotente e arrogante. Algo como um super-homem. Porque... e
se ele morre no meio do caminho...
Ah! Leiam o
livro!...

Styles é,
portanto, o cenário do primeiro caso de Poirot. A mesma casa é também cenário
do seu último caso, Curtains (Cai o pano), no qual ele morre, após 33 romances e 54 contos. O obituário de Poirot saiu na
primeira página do New York Times, que, além desse, nunca publicou obituários
de personagens fictícios.