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sábado, 24 de setembro de 2022

Por trás de um bom dia!

Conto aqui
a história que está por trás da
minha versão da música
Good Morning Good Morning
dos Beatles.

Publiquei no meu canal do youtube um vídeo Bom dia, bom dia! com essa música em português.

O resultado ficou bem legal. Muitas pessoas curtiram.

Deu muito trabalho fazer. Muitos perrengues. Aqui eu conto os desafios mais interessantes e curiosos.

Se você ainda não viu, assiste lá, são só 3 minutos.

Aproveite e dê um like, deixe um comentário para eu saber quem foi que viu, se inscreva no canal, compartilhe no facebook etc etc.


Bom dia! Bom dia!


Good Morning Good Morning
The Beatles

A canção Good morning Good morning do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band dos Beatles não é muito conhecida, nem admirada. No contexto desse disco ela faz sentido, com seu ar de banda de circo, cheia de experimentalismo e um toque de psicodelia. A ideia do arranjo dos Beatles era emular uma banda de sopro, como se fosse a Lonely Hearts Club Band tocando e não eles. É uma música datada, feita para preencher um disco, quase esquecida. Mas que tem uma deliciosa marca beatle.

Não me parece que algum artista famoso a tenha regravado. Pesquisando, só vi covers de outros menos famosos e sempre tentando seguir ao máximo o arranjo original. Até que eu ouvi Micky Dolenz cantar essa música.

[Micky Dolenz: único sobrevivente, hoje, dos Monkees.]

[The Monkees: grupo musical com programa de televisão dos anos 60; sou fãzoco deles.]


Good Morning Good Morning
Mick Dolenz com Christian Nesmith

[Christian Nesmith: filho do Mike Nesmith (outro monkee – o do gorrinho).]

Depois de assistir o vídeo acima, ouvi novamente o Mick na sua gravação original em álbum. Nas duas versões, a doçura da voz do Mick, dos arranjos e dos vocais me ganharam.


Good Morning Good Morning
Mick Dolenz

Aí eu quis tentar fazer algo parecido. Algo suave, doce, para realçar o lado poético da canção.

Malabarismos musicais

O primeiro passo foi aprender a tocar a música no violão. Eu já tinha as cifras, o que é até fácil de achar na internet. Escolhi tocar junto com a gravação dos Beatles porque eu a conhecia bem. Só que não foi tão simples acompanhá-los no violão – a música é cheia de quebras de compasso e me exigia malabarismos.

Dava para copiar o acompanhamento de guitarra que o John toca na gravação (ouça aqui). Esse acompanhamento funcionou bem na gravação deles para chegar ao propósito do álbum, mas em si não é bonito. Não era o que eu queria.

As duas gravações do Mick Dolenz eram muito distintas da dos Beatles: usavam muitos violões. Eu não queria fazer exatamente igual ao que eles fizeram. Queria copiar apenas a sensação de suavidade que elas tinham.

Como a gravação dos Beatles estava cravada na minha memória, afinal eu a escutava há quase 55 anos, desde 1967, parti para aprender a tocar como a minha memória afetiva lembrava da música, sem ficar escutando a gravação original dos Beatles.

Uau!! não foi lá muito fácil, não. Mesmo sendo só uns 4 acordes, dos mais simples (A, Em, G, D). Preencher o ritmo e fazer as quebras exigiram uns dias de experimentação e treino. Claro que um músico de verdade teria mais facilidade do que eu. Mas o que se vê na internet são os guitarristas tocarem de modo semelhante ao que o John toca na gravação. E, como eu disse, não era o que eu queria.

Tocar intuitivamente como eu sentia a canção na minha memória foi o método certo para o que eu queria. Para John, que aprendeu a tocar, cantar e compor intuitivamente, com praticamente zero conhecimento formal, nada havia de esdrúxulo nessa canção. Ele compunha e tocava como sentia. Eu então tive que aprender a tocar a canção como eu a sentia.

Não basta contar compasso

Basta contar consigo
Que a chama não tem pavio

Para muitos músicos formais, essa música é disparada a mais complexa composição dos Beatles.

George Martin, o maestro produtor musical dos Beatles, reconhecido como o quinto beatle, escreveu um livro, Sgt. Pepper, onde conta como foi a criação do mais famoso álbum deles: Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band. O capítulo 8 é dedicado à música Good Morning Good Morning.

George Martin conta como foi difícil para os músicos de estúdio, como os do conjunto de sopros que participou da gravação, entenderem o que tinham que fazer na gravação e quando fazer. Os Beatles não entendiam a dificuldade. Para os músicos era necessária uma partitura. E não havia uma. Posteriormente, a editora Northern Songs, somente a partir da audição do disco já gravado, fez a primeira.

Só para se ter uma ideia, nesta partitura, o primeiro verso da primeira estrofe compõe-se de dois compassos 5/4, o que já é inusitado, somando 10 "tempos" (10/4). Já no segundo verso, o segundo compasso é estendido para 2 compassos: um 3/4 e um 4/4, somando 12 tempos. Adiante a música complica mais ainda. A confusão é tanta que pode-se encontrar partituras com diversas transcrições diferentes.

Há quem proponha ser mais simples se ter uma partitura para a melodia cantada, outra para a harmonia do acompanhamento e uma super simples para a bateria, que, incrivelmente, mais parece um metrônomo que marca os ticks (semínimas, batidas, "tempos") sem marcar (definir) claramente os compassos (assista aqui). Isso funcionaria porque cada uma dessas coisas na música tem um ritmo próprio distinto das outras e esses ritmos se encaixam simultaneamente.

Começando a gravar

O passo seguinte era casar o meu jeito de tocar com o arranjo dos Beatles. Assim de cara não dava certo, mas mexendo aqui, mudando ali, deu-se um jeito. Gostei.

A harmonia ficou ligeiramente diferente; isso foi maneiro pra mim. Basicamente, no lugar das pausas que a guitarra do John dava, eu preenchia com algumas notas ou acordes diferentes da gravação original. Não era muita coisa, mas eu me sentia melhor assim.

Parti para gravar esse violão no Pro Tools First, o software de edição de áudio gratuito que uso.

Primeiro eu criei uma trilha com a gravação original dos Beatles. Gravar o meu violão seria como se eu tivesse adicionado um violão à gravação deles.

Como eu pretendia que outras pessoas participassem remotamente, o que acabou não acontecendo a não ser pela bateria da Carolina, e também para facilitar edições, essa gravação tinha que ficar em um tempo certinho. Contando as batidas em um intervalo de tempo, chutei que a gravação era próxima de 120 bpm (batidas por minuto).

Defini que iria trabalhar com esse tempo e ajustei a gravação dos Beatles para ficar exatamente nesse tempo. Não foi difícil fazer isso no Pro Tools, que tem ferramentas apropriadas para esticar/espremer o som e porque a bateria do Ringo marca exatamente cada "batida" da música. Depois de pronto vi na internet alguém dizer que no disco eram 121 bpm. Meu chute, 120 bpm, havia sido bom.


John Lennon
ilustração de Claudio Duarte

Aí estava pronto para gravar em outra trilha o meu violão acompanhando. Era só para ter uma base para começar. Mas foram dezenas de tentativas, dezenas de edições e algumas descobertas de nuances da gravação original.

Agora vou cantar! Não será a gravação final. Vou arranjar um cantor depois. Droga! o tom é baixo para a minha voz; e na outra parte, a ponte, o tom é alto demais para eu conseguir cantar suave.

Se fosse só esse o problema...

Destrava-língua

A música tem duas vezes uma bridge (ponte) – uma estrofe entre as estrofes padrões da música (os verses). Cada ponte com uma letra distinta. O problema é que as letras dessas bridges são cantadas tão rapidamente que eu não conseguia cantar de uma maneira que desse para entender. Além de que, pela rapidez, eu sempre errava a pronúncia de alguma palavra, para mim era um verdadeiro trava-língua.

Havia duas soluções para isso:

  1. Uma, fazer uma versão em português para a música, o que eu adoro fazer (assista aqui) e estou tentando me aperfeiçoar; é mais fácil pronunciar na língua materna;
  2. outra solução era fazer o que o Mick Dolenz fez: prolongar o tempo da ponte sem mudar o ritmo da música. Ele deve ter pensado "quero cantar isso, mas esses caras são loucos!". Isso permitia tornar a interpretação mais doce, sem de fato tornar mais lenta a sensação da música.

Decidi adotar as duas soluções.

Entendendo a letra

Para começar a letra em português, o primeiro passo era entender a letra em inglês. E esta era meio doida!

"I've got nothing to say"

Lennon empregou o seu estilo "poema abstrato de frases sem aparente conexão mas que causam a sensação de algo". Era a época de Lucy in the sky, na qual cavalos comiam tortas de marshmallow; de Across the Universe, em que palavras fluíam como chuva em um copo de papel; e de I am the Walrus, sentando em um floco de milho.

"Half of what I'm saying is meaningless"

George Martin explica no seu livro que John costumava compor ao piano em casa com a televisão ligada com volume baixinho. Quando estava sem inspiração, ele se distraía olhando para a tela.

Num desses momentos, apareceu um anúncio dos sucrilhos Kellogg's – que dizia "Good morning! Good morning! the best to you each morning". Essa foi a inspiração para ele começar a canção: se os flocos de milho são a maneira correta de começar um "bom dia", como seria o resto do dia desse comedor de sucrilhos?


anúncio que John assistiu

Martin comenta que nessa época John morava em Weybridge, subúrbio chiquésimo afastado do centro de Londres, em uma mansão de 27 cômodos com sua mulher Cynthia e o filho Julian. Na letra da música, John procura transmitir a sensação de morar em um lugar assim, onde nada acontece. Seria um dia iniciado com sucrilhos e com mais nada de interessante depois.

Paul morava no centro de Londres e tinha uma vida boêmia e cult. Quando John não aguentava a sua vida modorrenta, fugia à noite para a casa de Paul e para a badalação. Em breve John conheceria Yoko que o libertaria daquela monotonia.

A letra contrasta a manhã-tarde no subúrbio com o agito da noite na cidade. Essa é uma interpretação específica do sentido da letra. A tradução literal não é tão sugestiva assim.

"I am he as you are he as you are me and we are all together"

Uma característica da letra de Good Morning Good Morning é a falta de coesão. Sequer dá para saber sobre quem se fala: é sobre o próprio narrador? sobre algum personagem? sobre quem está escutando a música? é indefinido? Os pronomes embaralham tudo: his life; your boy; I've got nothing to say; glad that I'm here.

Fazendo a versão

Lennon não gostava que tentassem decifrar "sentidos ocultos" nas músicas dos Beatles. Não eram ocultos; eram inexistentes.

Percebi que eu não ficaria satisfeito em gerar uma letra assim e procurei meio que dar algum sentido próximo ao que moveu Lennon inicialmente. Até porque o pique do subúrbio carioca é oposto ao do subúrbio londrino onde ele morava e que o inspirou. Que tal falar sobre um cara entediado e que ao chegar a noite se diverte, já que todos saíram do trabalho e da escola? Não deixa de ser uma interpretação válida da letra original.

O cara vagueia pelo bairro em que nada acontece, até na velha escola. Porém quando o sinal de saída toca, as ruas se enchem e, chegando a noite, pessoas vão se divertir.

Procurei manter o estilo de frases soltas geradoras do clima a ser passado. Mas sem pronomes embaralhados.

Respeitando métricas, tônicas e rimas

Só que as dificuldades maiores ainda viriam. A letra, como a língua inglesa permite, é majoritariamente feita com palavras monossílabas. Cada verso tem 4 ou 5 sílabas, cada uma podendo ser uma palavra que em português tem no mínimo duas sílabas. E esses versos são oxítonos – a tônica é na última sílaba. No português a maioria das palavras são paroxítonas. Não serviam para terminar esses versos de apenas 4 ou 5 sílabas. Tremenda limitação.

Por exemplo: nothing to do – 4 sílabas em 3 palavras, tônica na última sílaba (do). Tradução: nada a fazer – 5 sílabas. Mas esse verso é fácil de resolver, basta cantar nad'a fazer. Esse truque eu já tinha aprendido em outras versões que fiz, abusar das contrações (liaisons). Outro lance útil foi usar verbos no infinitivo (fazer, valer) ou em algum tempo em que eles são oxítonos (mudou, parou).

A maioria dos versionistas desrespeitam essas questões, o que faz com que os cantores tenham que modificar a melodia, cantando com métrica e tônicas diferentes das notas compostas pelo autor da música. Tom Jobim reclamava muito de seus tradutores para o inglês por esse motivo.


Tom reclamava das versões mal feitas.

Então ficou assim: Nad'a fazer | pr'hoje valer | s'ela não vem.

Além de uma enorme pescaria de monossílabos tônicos: vem, bem, sei, lar, mal, sal, etc. para fazer os versos soarem oxítonos.

Isso era só o começo. Muitas aventuras para produzir o vídeo e o som ainda viriam. Não vai dar pra contar.

 

Apenas mais essa...

Logo após ter o som quase pronto (nunca ficou - hehe 😁), quando fui procurar imagens sem copyright ligadas a manhã para começar a produzir o vídeo, a primeira que apareceu foi um vídeo de sucrilhos com leite.

Meu anjo da guarda é maneiro, não é? 😜

Contei aqui
a história que está por trás da
minha versão da música
Good Morning Good Morning
dos Beatles.

Publiquei no meu canal do youtube um vídeo Bom dia, bom dia! com essa música em português.

Se você ainda não viu, assiste lá, são só 3 minutos.
Aproveite e dê um like, deixe um comentário para eu saber quem foi que viu, se inscreva no canal, compartilhe no facebook etc etc.

Letra original
Significado literal
Minha versão

[Verse 1]
Nothing to do
to save his life,
call his wife in

Nada a fazer para salvar a vida dele, contate a mulher dele
Nada a fazer
pra hoje valer
se ela não vem

Nothing to say
but what a day,
how's your boy been?

Nada a dizer. "Mas que dia!" "Como vai seu menino?"
Nada a dizer,
nem que fazer:
todos vão bem

Nothing to do,
it's up to you

Nada a fazer, cabe a você
Nada a fazer
É só você

I've got nothing to say
but it's okay

Eu não tenho nada a dizer, mas está ok.
E mais nada eu sei
Mas tá ok

[Verse 2]
Going to work,
don't want to go,
feeling low down

Ao ir para o trabalho, não quer ir se sentindo para baixo
Ir trabalhar
Xi! nem pensar!
Sente bem mal

Heading for home,
you start to roam,
then you're in town

Indo para casa, você começa a perambular. Agora você está na Cidade
Na volta ao lar
fica a vagar.
Povo sem sal

[Bridge 1]
Everybody knows
there's nothing doing

Todo mundo sabe que nada está rolando
Nada acontece e
todos sabem

Everything is closed,
it's like a ruin

Tudo está fechado, é como uma ruína
Tudo está fechado e
nada abre

Everyone you see
is half asleep

Todos que você vê estão meio dormindo
Como se estives-
sem a dormir

And you're on your own,
you're in the street

E você está por sua própria conta, você está na rua
Sem que mais ninguém
fosse sair

[Verse 3]
After a while
you start to smile,
now you feel cool

depois de um tempinho você começa a sorrir, agora você se sente maneiro
Um passo a mais,
sorri feliz,
tudo tá azul

Then you decide
to take a walk
by the old school

Então você decide dar um passeio pela escola velha
A velha escola
pôde olhar
no portão sul

Nothing has changed,
it's still the same

Nada tem mudado, ainda é tudo o mesmo
Nada mudou,
Tudo parou

I've got nothing to say
but it's okay

E mais nada eu sei
Mas tá ok

[Bridge 2]
People running round,
it's five o'clock

Pessoas correndo, são cinco horas
Povo a correr,
tocou o sinal

Everywhere in town
it's getting dark

Em todos os lugares da cidade está escurecendo
E na noite na-
da mais é igual

Everyone you see
is full of life

Todos que você vê estão cheio de vida
Pensam no pão,
lanche e café

It's time for tea
and Meet the Wife

É hora do chá e do Meet the Wife (programa de tv - Econtro com a Esposa)
Que logo vão
ver a mulher

[Verse 4]
Somebody needs
to know the time,
glad that I'm here

Alguém precisa saber as horas, feliz que estou aqui
Alguém pergunta
que horas são,
doce e tão bem

Watching the skirts,
you start to flirt,
now you're in gear

Olhando as saias, você começa a paquerar. Agora você vai em frente.
Pisca e sorri,
"Pra onde quer ir?"
Ela então vem

Go to a show,
you hope she goes

Vá para um show, você espera que ela vá
Vão para um show.
"Foi bom? Gostou?"

I've got nothing to say,
but it's okay

E mais nada eu sei
Mas tá ok