Nada como um dia após o outro...
(Vinicius & Baden)
Como ser gauche:
Há dois anos, mais ou menos, numa conversa de botequim sobre filmes que cada um tinha visto recentemente, confessei que não me atraíam filmes feitos para a gente sofrer. Um pouco daquele papo de "de amarga, basta a vida".
O meu incômodo, expliquei, dizia mais respeito a um público
que só vê profundidade em um assunto se este falar de misérias extremas: físicas,
psicológicas, econômicas, sociais... É uma discussão antiga, na qual a Comédia
é encarada por muitos como um gênero menor. Importantes, para estes, são o Drama e a
Tragédia.
Também me revoltam filmes, livros, etc. quando partem para a apelação tratando desses assuntos dramáticos para ganhar facilmente esse tipo de público.
No meu tempo (ai, meus tempos!...), fui dos pouquíssimos que se recusaram a assistir o filme Love Story, primeiro porque era um blockbuster – palavra que ainda não existia na nossa língua –, mas, principalmente porque todos o adoravam por terem chorado muito. Não vi até hoje.
Acho que fui o único brasileiro da minha época que não leu Meu Pé de Laranja Lima. Mesmíssimos
motivos. Também não li até hoje. Mas vi o filme recentemente na televisão.
Chorei como um desgraçado. Adorei e recomendei a todo mundo. Vou ler o livro
algum dia.
Surge o livro
Nessa conversa no botequim, meu amigo perguntou se eu tinha
lido O
Filho Eterno, do Cristóvão Tezza. Recomendou muito,
dizendo que provavelmente eu iria gostar, apesar do assunto brabo. Pensei
comigo: "ora, já tenho tantos livros pra ler...". E esqueci.
Meu amigo fez então a coisa certa, me deu o livro no meu
aniversário. Onze meses depois, procurando um livro de menos páginas para ler
na condução, peguei-o. No ponto do ônibus, comecei pela orelha e quase me
arrependi da escolha. Era sobre uma criança com mongolismo!
Sabia que Cristóvão Tezza era um dos mais elogiados e
premiados escritores brasileiros atuais. Um livro pequeno. Vou insistir! Fui fisgado, na orelha mesmo, pela palavra
Curitiba.
Morei lá de 1965 a 1967, o que foi profundamente marcante. A
cidade e a época. Agora aposentado, pensava em relembrar as experiências boas e
ruins, conversando, pesquisando e fantasiando muito. Quem sabe escrevendo aqui sobre essas experiências?
E aí tenho dois assuntos a tratar, sobre o livro que eu li e
sobre as consequências das lembranças.
Assunto 1
O livro O Filho Eterno
Sim, gostei bastante do livro. Não posso recomendá-lo porque
tenho por princípio não recomendar nada. Espero que os meus comentários a
seguir, sobre o que gostei no livro, motivem quem, se identificando com o meu
gosto, deseje conferir o prazer da leitura dele.
Não vou resenhar a "história" contada no livro,
pois grande parte desse prazer foi tentar antecipá-la em cada parágrafo,
frustar-se cada vez que o suspense era mantido e se surpreender com a crueza da realidade dos
desfechos de cada situação e com a honestidade envolvida no ato de narrar esses
desfechos. Por isso, recomendo (pronto, quebrei a promessa!) que não se leia a
orelha do livro, nem resenhas da história.
Muitos,
na internet, se dedicam a falar sobre o estilo do livro, as técnicas literárias
empregadas na escrita e blá-blá-blá. Não tenho capacidade para tal e isso não é
o que me motivou à leitura. Apenas digo que o escritor caprichosamente me
envolveu na travessia das palavras, parágrafos e capítulos, do início ao fim do
livro.
É meio difícil fugir a algumas observações sobre técnicas e
estilo que são sempre citados nesses textos e vídeos sobre o livro. A primeira
delas é: trata-se de uma ficção ou memória autobiográfica? O próprio autor
apresenta-a como ficção, mas aceita ser também uma memória. Li-o
fundamentalmente como ficção, o que me deu mais prazer na leitura. Em vários
momentos a curiosidade fez-me buscar no google
alguns acontecimentos narrados e perceber que eram reais, o que aumentava a
graça da leitura como ficção e não como uma simples narrativa fiel a memória
(existe isso?).
O que todos citam é que a chave disso é o livro ser escrito na terceira pessoa. Numa memória autobiográfica, o mais simples seria o narrador usar a primeira pessoa - "eu"- para que o leitor confunda o protagonista com o autor da obra. Não é isso o que o autor, Cristóvão Tezza, faz. O protagonista, que é um escritor, sequer tem seu nome mencionado, é sempre referido como "ele" ou "o pai". Isso é mais importante porque enfatiza a distinção entre a pessoa "o pai", descrita em cada momento do livro, e a pessoa "o autor" (Cristóvão Tezza) após ter passado pela formação que a própria história conta.
"...tem a viva sensação de que [o autor] é escrito pelo que escreve ..."
(C. Tezza)
acrescentei o [o autor]
A escrita na terceira pessoa também facilita a empatia do leitor com o personagem. A todo momento o leitor se pergunta "se isso fosse comigo?" e se sente capaz de pensar exatamente como "o pai".
Pode-se perceber que as próprias características da escrita do livro são fruto da história contada, ou seja, os acontecimentos como que explicam, pela vivência, os tais estilo e técnicas. Por exemplo, a natural arrogância juvenil do "pai" contrasta com a humilde sinceridade da narração.
A tal empatia que o leitor (eu, no caso) acaba tendo com o personagem foi o que realmente me cativou desde o início na leitura. Graças à honestidade e coragem da descrição que é feita do "pai", seus pensamentos, suas ações e atribulações, o leitor é desafiado a ser também honesto e corajoso. Talvez nem todos os leitores consigam ter prazer em ter que abandonar seus próprios pensamentos hipócritas, ou admitir a sua crueldade inerente própria de quem está fora do drama real específico, para aceitar um personagem não hipócrita diante de questões dramáticas reais. Na ficção essa distância é mais assimilável. Esses leitores podem, durante a leitura, ficar desejando a tradicional "virada e superação" na história. Podem até achar que o final da história seguiu esses cânones do cinema americano. E até gostar do livro por isso. Mas não terão sentido o prazer de se identificar com a humanidade do protagonista.
Um outro ponto, que particularmente me é caro e que me fez
aproveitar ainda mais o livro, foi o entremear na história das
dificuldades, conflitos, expectativas, desesperos e desesperanças que um artista
frequentemente passa antes dele conseguir uma (eventual e rara) realização
verdadeira. Isso não é mostrado através de uma enumeração ou descrição desses
problemas; sim pelo surgimento de situações reais, inevitáveis muitas vezes por
conta do ambiente ou da psicologia do infeliz abençoado com a tal "alma de
artista". O meu sentimento relativo às agruras dos artistas, despertado na
leitura de O Filho Eterno, foi
semelhante ao que tive lendo a primeira metade de Servidão Humana (Of Human Bondage) de Somerset
Maugham. Espero ter tempo de um dia, ou muitas vezes, falar aqui desse
assunto e também desse outro livro que adorei.
O escritor Cristóvão Tezza
Aqui
só me cabe dizer que é considerado como um dos maiores escritores brasileiros
contemporâneos, superpremiado e publicado aqui e lá fora. Para conhecer mais
detalhes sobre ele, não existe melhor maneira do que ler O Filho Eterno.
Assunto 2
Minhas lembranças curitibanas
Como eu disse, a menção a Curitiba logo na orelha do livro atiçou minha curiosidade pelo
livro.
Morei lá de 1965 a 1967, de 12 aos 15 anos, e me vejo sempre lembrando,
conversando e fantasiando muito sobre esse período da minha vida.
Na leitura de O Filho
Eterno, o que disparou a minha fantasia foi, logo na página 74, ser dito
que "o pai" escritor, que
tem as mesmas marcas históricas do
autor Cristóvão Tezza, ter nascido em 1952. Ora, eu também! Teríamos mais ou
menos a mesma idade. Inclusive na época em que eu morava em Curitiba, ora! 😏
Para conferir se o ano de nascimento do "pai" de O Filho Eterno era o mesmo ano do Cristóvão Tezza, pesquisei na wikipedia, onde diz que o autor nasceu em 21 de agosto de 1952. Que nem que eu !!! Nascemos no
mesmo dia !!!
Em 65, Curitiba tinha uma população estimada de 500.000
habitantes. Mas para mim era como uma aldeia grande. As ruas calçadas, por
exemplo, iam do Alto da Rua XV até o Batel, além desses extremos as ruas eram
de barro. Frequentemente eu caminhava toda essa extensão que ia do colégio no
Batel até a casa do meu colega, exatamente no tal Alto da Rua XV. Uma hora e
pouco de caminhada, 5,5 km. Menos do que andar do Posto 1 no Leme ao Posto 10
em Ipanema. Ou seja, era uma cidade pequena.
Não sei, mas não devia haver muitos ginásios nessa aldeia. Pelo Anuário
Estatístico Brasileiro do IBGE vi que só havia 20 ginásios estaduais em
todo o município. Me veio a ideia de que, por termos (exatamente) a mesma
idade, haveria a possibilidade de termos sido colegas de escola. Para mim é uma
relembrança quase impossível. Eu só fiz dois amigos nesses três anos, ambos
cariocas como eu, de passagem pela cidade. Mais do que isso só lembro de
pouquíssimos colegas e de nenhum nome.
Do pouco que me lembro da época, um episódio me marcou a ponto de frequentemente
eu tentar reconstituir mentalmente os detalhes. No intervalo de recreio no
ginásio, tinha um colega que não ia para o pátio. Eu ia, mas preferiria não ir.
O pátio era dividido: num lado ficavam os meninos e no outro as meninas. Não
era permitido contato entre gêneros distintos. Desanimador. Eu, curioso para
saber se o colega, que assim como eu não se socializava, tinha o mesmo motivo,
cheguei a ele e perguntei que livro ele estava lendo, já me intrigando pela cor
amarela da capa me ser familiar. A resposta dele, com ar de "por que esse
chato está querendo me incomodar?", foi algo como "sobre educação na
Inglaterra" (conto como costumo me lembrar e não como exatamente foi).
Reconheci o livro e perguntei: Summerhill?
Meu pai tinha comprado o livro e eu já lera boa parte dele. Os olhos do
meu colega se arregalaram e o resto da conversa eu não lembro mesmo, até porque
já inventei dezenas de desfechos. Não sei se algum aconteceu. O nome do colega
era Jairo. Jairo?
Acontece que na página 168 de O Filho Eterno, está escrito que "o pai", então com 16 anos, leu Summerhill. Com 16 anos, em 1968, eu já estava de volta no Rio.
Mas... e se o autor se confundiu na data de uma memória tão distante que eu
quase não me lembro de nada? Achei meio difícil imaginar que na Curitiba de
1967 três adolescentes leram Summerhill.
Pela visão que eu tinha daquela aldeia, isso era muito improvável. Mas não
impossível. Jairo seria o Cristóvão?
Sempre converso, nas reuniões de família ou com os amigos,
sobre os livros que estou lendo ou acabei de ler. Contando esses detalhes
acima, todos sempre diziam eufóricos "escreve para ele e pergunta".
Foi o que fiz, escrevi um email a pretexto de desejar feliz
aniversário atrasado e aguardar retribuição por sermos gêmeos nesse aspecto,
contando todas essas minhas especulações sobre possíveis coincidências.
E ele me respondeu. Não podia ser mais amável e generoso.
Contou em detalhe as datas e colégios onde estudara. De fato ele estudou no
mesmo colégio que eu, mas em épocas diferentes. Ele no primário e eu no
ginásio.
Somando todos os detalhes, concluí que ele não era o Jairo.
Achei a história das coincidências reais muito legal, porém
a história com as coincidências prováveis que imaginei mais legal ainda. Como
dizem os italianos
Se non è vero, è ben trovato.
Ou em português
Se a versão é melhor que os
fatos, que se danem os fatos.
.O inesgotável poder da mentira se sustenta sobre o invencível desejo de aceitá-la como verdade
(C. Tezza)