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sábado, 22 de julho de 2017

Frantz (de François Ozon) e o elogio à mentira

O mundo tem dois tipos de pessoas: os que confessam que mentiram e os que mentem.

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
          Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente. 
         (uma confissão de) Fernando Pessoa

Mentir, palavra feia, nada mais é do que criar uma ficção e fingir que ela é a realidade. Já ficção é palavra bonita.

Para criar uma ficção é preciso imaginação, fantasia. O futuro, por exemplo, é uma ficção. Apenas podemos imaginá-lo e tentar acreditar nessa mentira até que ela se torne real ...ou não.

Nelson Rodrigues: "sem sorte você não atravessa a rua""
Parafraseando Nelson Rodrigues: sem fantasia você não atravessa sequer uma rua! É preciso imaginar, antes de atravessar, que vai-se ter sucesso.

Eu, por exemplo, fico o tempo todo inventando histórias. Adorava fazer viagens longas de ônibus (para o Fundão, por exemplo) passando um tempão ficcionando. Nem sei quantas vezes fui presidente, técnico de futebol e namorei alguma menina de quem nunca tive coragem de me aproximar.

Todos inventam histórias, até quando não querem. Ao ser apresentado a uma pessoa, cria-se toda uma fantasia sobre ela, mesmo inconscientemente. Essa fantasia vai se aprimorando, se corrigindo ou criando novos enganos à medida que mais informação sobre a pessoa surge. E acreditamos nessa nossa fantasia para poder de cara gostar ou não da pessoa, para poder reagir "adequadamente" à sua conversa, entre outras coisas.

Isso é uma coisa; outra é substituir o real por fantasias, mentiras.

Foto by Adrian Michael - Own workCC BY 2.5Link
Fazemos isso com tudo. Com a vida, por exemplo. Há quem acredite em um Criador e em uma história da Criação nem tão bem bolada assim. Muitos apostam suas fichas no Salvador. Sobre isso não sei muito, nem mesmo sei de quê fomos ou seremos salvos.

Sei que a vida de muita gente fica mais simples de ser levada por acreditar nessas narrações que podem ser que sejam apenas ficção (não usei a palavra mentira porque é feia).  Ou seja, é mentira que toda mentira seja ruim; é verdade que existem mentiras boas.

Disso ninguém escapa. Estamos o tempo todo acreditando em mentiras bondosas que suavizam a nossa vida. Principalmente mentiras que inventamos sobre nós mesmos.

Ah, claro! com exceção de você, querida leitora, e de você, querido leitor.

No cinema... com Ozon

Essa semana fomos ao cinema (coisa rara) e adoramos (coisa mais rara) o filme: Frantz, de François Ozon.



Não fui pela sinopse publicada. Todas são sempre tão inexpressivas que são um dos motivos de eu ir tão pouco ao cinema. Fui porque o Ozon é um dos meus cineastas contemporâneos prediletos (um dos três... ou quatro...).

Ozon aos 45. Agora tem 50.
foto by Georges Biard, CC BY-SA 3.0, Link

Talvez seus filmes não mereçam 5 estrelas, mas ele sim. Não, essa não é uma versão moderna do antigo dito "o filme é uma merda, mas o cineasta é gênio". Seus filmes são de BOM para MELHOR, porém ainda não dá para ele entrar no panteão dos deuses sagrados da sétima arte. Mas não perco um.

Esse é o 16º e penúltimo filme dele. Muitos não passaram aqui. Esse, por exemplo, está passando meio despercebido... O último dele é L'Amant Double que ainda não chegou aqui no Bananão, mesmo tendo causado frisson em Cannes.



Seu filme que mais me impactou foi Dentro da Casa (Dans la Maison - 2012). Imperdível. Como (ex-)professor, me identifiquei com o filme por conta da relação professor-aluno, complexa graças a excepcionalidade do aluno e o desejo do professor de lapidar esse (possível) diamante. Mas isso é assunto para um outro post. Prometo.



Frantz, o filme, de que se trata?

O que há em comum entre esses dois filmes é a confusão causada pela diferença (em um) ou semelhança (no outro) entre as histórias contadas pelos personagens e a realidade por eles vivida. Em Dentro da Casa, o assunto é a interferência da ficção na realidade. Já Frantz mostra a tendência que as pessoas (incluindo personagens e espectadores) têm de preferir a ficção à realidade.

Por isso subtitulei com "o elogio à mentira". Confesso que é meio exagerado esse subtítulo, mas destaca o que mais o filme me fez pensar: o quanto as pessoas preferem substituir a realidade por fantasias.

Não, o filme não é sobre religião. Há uma cena importante, não fundamental, onde um padre confessor generosamente propõe o caminho a ser seguido. Não pude deixar de pensar que, no fundo, padres vivem de vender uma grande fantasia, uma mentira total, que conforta e traz consolo ao disparate que é a vida.

Perdão foi feito pra gente pedir

Outro tema principal do filme é o perdão: a necessidade de se ser perdoado e de se perdoar. O cristianismo, pelo menos teoricamente, é o grande patrono desse refrão. Palmas aí. Sofremos quando não somos perdoado e nos libertamos de pesos quando perdoamos. O contrário, a manutenção do rancor, é danoso para os dois lados (ambos simples pecadores). O filme exemplifica isso, não apenas na animosidade que causou a guerra (primeira mundial), como o ódio ressentido do pós-guerra. A própria história contada no filme também mostra o efeito do perdão.

Soube outro dia de uma pessoa que anota tudo que de mal fazem a ela: "porque, se você esquece, acaba perdoando..." ! Eu não anoto e tenho péssima memória. Quando vejo, já perdoei.

Ok, menti. Eu perdoo, mas trago uma fichinha preta no coração com a lembrança do que senti.

Não é só de mentira e perdão que o filme trata. Posso enumerar aqui a condição feminina, o absurdo da guerra, o pacifismo e o nacionalismo. Tudo mostrado sem discursos didáticos, só situações plausíveis e imprescindíveis na história.

Em muitas resenhas, o luto é citado como um dos temas deste filme. Não dou esse destaque, prefiro destacar a culpa, justificada ou não, sempre envolvida no luto. O filme, aos meus olhos, me pareceu destacar mais a dor da culpa do que a dor da ausência. Para a culpa, nada como o perdão.


O assunto

A história é bem simples (pode deixar que não vou contar), seu desenrolar é previsível. Ozon, todavia, nos embaralha com pistas falsas e, assim, fica difícil parar de prestar atenção. É o tal suspense: suspensão dos nossos intelecto e instinto. O espectador está sempre pronto para preferir e aceitar as opções mentirosas.

Frantz é inspirado em uma peça de teatro francesa de 1931, que rendeu, em 1932, o filme americano Broken Lullaby, de Ernst Lubitsch. O filme americano foi proibido na Tchecoslováquia por ter conteúdo pacifista.

A trama se passa após a primeira guerra mundial. Em uma cidadezinha da Alemanha derrotada, os moradores ainda estão ressentidos com os franceses que nas batalhas mataram seus filhos. O túmulo do tal do Frantz, dado como morto na guerra, é cuidado por sua noiva Anna, que, desde a partida de Frantz, mora com os pais dele. Ela é a personagem principal.

A atriz que representa Anna é Paula Beer, alemã de 21 anos, com uma presença marcante na tela. Ganhou atriz revelação no Festival de Veneza por esse papel.


Há o encontro com Adrien, um francês que se apresenta como amigo de Frantz, transtornado pela morte deste. Os alemães da cidadezinha recebem-no muito mal. Adrien é interpretado por Pierre Niney, conhecido especialmente por ter feito Yves Saint-Laurent. O ator diz ter aprendido violino e alemão para fazer o filme do Ozon. Acreditei.

Pierre Niney as Yves Saint LaurentTHIBAULT GRABHERR/TIBO & ANOUCHKA/SND

A primeira parte do filme gira em torno da relação entre o francês e o alemão morto e o efeito na família de Frantz da lembrança do falecido causada pela presença de Adrien, o francês.

Na segunda parte, a ação muda para a França, onde se pode notar a destruição ocorrida no seu território, pois foi lá onde as batalhas foram travadas, e a mesma rivalidade e ressentimento que havia nos alemães.

O filme é em preto-e-branco com contraste diminuído. Há quem entenda que isso foi feito para criar o clima emocional dramático e nostálgico. Outros acham que assim é mais barato criar cenas de época (deslumbrantes e perfeitas, por sinal). A cor é usada em alguns momentos específicos.


É filme para se ver (e discutir). Sei que o verei de novo. Imagino que depois eu não vá querer alterar o que escrevi aqui. Até porque, se eu errei ou menti, foi para o bem do leitor. Perdoe-me.